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1. Finalmente, estamos em condições de antever o que virá após a mais que certa disrupção do nosso sistema partidário. Aqui vai o meu contributo visionário. A direita clássica e reformista e o centro-direita seriam representados pelo novo PPL (Partido Popular Liberal), formado a partir de metade do PSD, metade do que resta do CDS e da IL. Eventualmente, poderia haver um Partido Conservador, que agregaria as franjas restantes do CDS, uma fatia modesta do PSD e do Chega e os cépticos nos amanhãs que cantam. Ao centro esquerda, teríamos um PSDP (Partido Social Democrata Português), constituído a partir da outra metade do PSD e ala moderada do PS. Por fim, a esquerda clássica não revolucionária seria representada pela Frente Socialista Progressista, que juntaria o PS de Pedro Nuno Santos, o Livre e transfugas do BE. O PCP seria transformado em espaço museológico, com visitas guiadas a cargo de Pacheco Pereira. O Chega continuaria a ser pouco mais do que o alambique que destila a insatisfação popular. Mas logo que acabasse o bagaço, passaria a ser usada somente a destilação por coluna. Exposto o painel, é fácil de prever que, na sua dinâmica, teríamos um sistema bipartidario imperfeito, com a alternância governativa operada entre os blocos liderados pelo PPL e o PSDP.
2. Gostei do discurso vitorioso que André Ventura na noite em que foram conhecidos os resultados finais das eleições. Enquanto peça de oratória, entenda-se. Menos agressivo do que a da noite eleitoral. Sem largar as bandeiras do partido, Ventura delineou a estratégia para a próxima legislatura. Por camadas. Ficando claro que o objectivo é esvaziar a AD. Mas o discurso em si foi bem estruturado, observando as regras da oratória. Incluindo um pequeno exórdio. Ventura crê-se investido de uma missão histórica para o país. Quase messiânica. E as alegorias religiosas não ficam por aí. Ventura quer expulsar os vendilhões do templo. Leia-se PS e PSD. Os artífices do «marasmo» e da «corrupção», que «roubaram» o país durante meio século. Devíamos levar este discurso a sério. Mesmo considerando que é demagógico. E rebatê-lo sem o menorizar. É claro que, para o melhor e o pior, ambos os partidos têm dominado a vida política e alternadamente capturado o aparelho do Estado. Com predominância do PS. Por esse motivo, podemos falar, grosso modo, de uma cartelização bicéfala do sistema partidário nacional. Um tema que nos levaria longe e sobre o qual apresentei um trabalho no mestrado em Ciência Política. O Chega não é um partido “fascista”, nem de “descamisados”, como querem fazer crer os especialistas e os comentadores nas televisões e nos jornais. Acomoda muitas e variadas gentes. Com muitos credos. O seu ADN é uma espécie de conservadorismo nacionalista, identitário e anti imigração. A versão pátria de uma tendência em progressão na Europa. É claro que o discurso de Ventura, sem surpresas, é redutor, mistificador e a preto e branco. Uma retórica de combate. Mas nem por isso menos eficaz. Os sofistas, na antiga Grécia, chegaram a ter mais audiência do que os filósofos “sérios”. E há quem diga que o verdadeiro debate político nasceu com eles.
3. No fundo, somos todos humanistas. Contribuintes. Sociais democratas, mais do que certo. Um bocadinho rebeldes (“after hours”, claro). Amigos da sustentabilidade e dos nossos amigos. Temos quase todos, consoante a idade, o curso geral ou complementar dos liceus, o 9°/11°, ou 12° ano de escolaridade (estes últimos correspondem, grosso modo, à antiga quarta classe). Muitos, num momento de alucinação, deram maioria absoluta a António Costa. Todos gostamos do empreendedorismo. Com as energias renováveis, assinamos de cruz. Todos, excepto algum anacoreta e o Miguel Sousa Tavares, temos uma conta numa rede social. Todos acreditamos que a poesia e a felicidade são as coisas “mailindas” de todas. Mas alguns experimentam, subvertem, mudam de lugar. Trocam as voltas à morte e ao medo.
4. Não vou ao ponto de afirmar que, na escrita, o estilo é tudo. Longe disso. Porque o estilo vai muito além da escrita. Está antes, durante e depois. Não é a combinação repetida de certas palavras de belo efeito, de modo a que nada signifiquem, como ironizou Herberto Helder, no conto homónimo de “Os Passos em Volta”. Olho para e estilo enquanto alquimia. Que reúne a disciplina e a necessidade. Que confere singularidade e leveza àquilo que toca. Que não deixa nada ao acaso. Sim, é tudo isso. Mas a sua concretização é pessoal, única. Alia o apuramento vigilante da forma, com o vigor cristalino das ideias que transporta. Emagrecendo o verbo, retira o que está a mais, deixando que a luz passe e possa ser admirada pelo leitor. Colocando espessura, filtra essa luz, criando uma penumbra onde o leitor se perde e, quiçá, se encontra.

* No caldário vegetal celta, significa “pilriteiro”

** O autor escreve de acordo com a antiga ortografia

Sobre o autor

António Godinho Gil

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