Portugal sem linha

Escrito por Daniel Lucas

Vivemos tempos insanos. Provavelmente esta é a expressão mais repetida, em voz alta ou em silêncio, no íntimo de muitos portugueses ao longo dos séculos. Talvez devesse constar nos manuais escolares: “Capítulo I — Portugal: uma história de tempos insanos”. Poderíamos eventualmente acrescentar “com intervalos para fado, futebol e impostos”. Sempre houve um certo talento nacional para o caos elegante.
Antes de sermos nação, fomos condado. Antes de sermos condado, fomos sonho. Um amontoado de terras e vontades, onde homens esboçaram linhas para dividir o que nunca lhes pertenceu. Chamaram-nas fronteiras. E logo a seguir vieram os mapas, os distritos, os concelhos, os brasões, os decretos. Organizaram-se as terras com régua e ambição. O que era de todos ganhou dono. O que era do céu desceu aos senhores da terra.
Portugal ergueu-se sobre guerras, alianças, teimosia genética e traições. Não se fez apenas com espadas ou cruzes, mas com silêncios e espertezas. Cada pedra empilhada em castelos contava a história de um homem que quis mais. Mais terra. Mais poder. Mais nome. Sempre mais. Sempre mais. No entanto, há algo de profundamente comovente nesta teimosia em existir. Num canto da Europa, onde os ventos do Atlântico sopravam liberdade, cresceu uma pátria que se agarrou à sua língua como quem agarra uma tábua em mar alto. Construímos impérios. Fizemos erros. Fizemos filhos em várias línguas. Fazendo um “forward” histórico…
A ditadura não caiu do céu, subiu das entranhas do medo. Foram décadas de silêncio imposto, de palavras vigiadas, de verdades e “palavras interditas”. Foi o tempo do “Deus, Pátria e Família”, usado não como farol, mas como corrente. A fé serviu-se do medo, a pátria serviu-se do povo e a família… foi obrigada a calar. Depois veio abril e novembro: o grito, a flor e a esperança. Um país a aprender a respirar de novo. Passámos da repressão à democracia com a estranha elegância de quem cai, mas ainda assim pousa com os dois pés no chão.
Mas hoje, entre ecos de um passado que julgávamos sepultado, há sombras que voltam a erguer-se. E não, não é o receio (acho mesmo que não deve ser) do Chega e do carismático/enigmático André Ventura, que, à hora que escrevo, é a segunda maior força política. É medo de outras personagens camufladas muitas vezes de branco. Dos rostos que gritam certezas absolutas. Que vendem identidade nacional como se fosse mercadoria. Que invocam a pátria sem lhe conhecerem a alma. Que falam de “valores” como se fossem donos da moral. Que agitam a bandeira como quem agita um lenço de despedida à liberdade.
É aqui que devemos parar. Refletir. O que somos nós, afinal? O que queremos deixar?
Somos um povo de conquistas, sim, mas também de cuidados. De resistências caladas. De famílias que não saíram de um molde, mas de pedaços que a vida foi deixando. Pais que se foram, mães que ficaram, avós que criaram, filhos de diferentes histórias que aprenderam a partilhar o mesmo teto e o mesmo afeto. Famílias feitas não só de sangue, mas de escolhas. De perdas, de encontros e de recomeços.
Preocupa-me, profundamente, ver jovens, a recusar ouvir toda a história. Todas as versões. Não querem saber o que foi a censura, da prisão de quem pensava diferente, das filas para pão ou do medo de falar alto. Estão fartos de ouvir, já não querem escutar! Ignoram o preço da liberdade como se ela tivesse nascido de uma linhagem espontânea. Como se a liberdade tivesse caído dos céus com garantia vitalícia e manutenção incluída. Falam de Portugal como se precisasse de mão de ferro, de regras duras, de obrigações absolutas, como se a solução para o caos fosse um regresso à disciplina cega e vertical. Como se o país, para se levantar, tivesse de se ajoelhar primeiro. É uma visão perigosa. Há um certo fascínio, por vezes inconsciente, pela ordem dura, pelas verdades únicas, pelo “era tudo mais simples dantes”. Confundem autoridade com autoritarismo, confundem valores com imposições. Dizem querer ordem, mas há uma nostalgia de um tempo em que pensar era crime. Essa nostalgia, disfarçada de patriotismo e alimentada por discursos inflamados, pode ser o princípio do fim… Claro que há responsabilidade de uma certa classe política.
Seja qual for o caminho, que não esqueçamos a nossa essência: um povo que se fez sem linhas, mas que traçou destinos. Nunca fomos linha reta. Somos um pais de curvas, de desvios e de atalhos, perdas e recomeços. De aldeias teimosas e cidades resistentes. Porque Portugal não é apenas um território. É uma herança. Uma responsabilidade. Uma história inacabada feita de muitas cores.
Quer-se um Portugal sem linha, mas com alma firme. Um país forte sem endurecer, que preserva sem aprisionar. Que seja belo não pelo que ostenta, mas pela harmonia das suas relações, das suas gentes, das suas diferenças. Uma nação que saiba decidir com cabeça levantada, com a sabedoria das cicatrizes e um coração aberto ao mundo. Que seja, enfim, um Portugal, com orgulho, com regras e ordem, mas que nunca seja preciso gritar para se ser ouvido.
Viva a nossa língua portuguesa. Viva as comunidades. Viva Portugal.

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Daniel Lucas

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