Num país onde o tecido cultural é tantas vezes atacado pela desvalorização, pelo imediatismo ou pela falta de visão política, a Guarda tem conseguido, apesar de tudo, independentemente de quem esteve ou está, manter viva uma chama cultural própria. E isso não acontece por acaso. Acontece porque ainda há quem acredite, com todos os desafios, que a cultura é essencial. É este acreditar que importa preservar e reforçar. Ainda que esta dinâmica se revele, por vezes, intermitente, há ainda espaço e… fé, para a construção de um futuro comum. Mesmo quando o associativismo e a cooperação se veem ameaçados pela desmotivação e apatia instalada, pelo desgaste acumulado, pelo cansaço de quem dá sem ver retorno. A sociedade foi levada a acreditar que esta é a nossa condição. Foram expostas, de forma contínua e quase invisível, a estímulos que ativam os circuitos do imediatismo e da comparação constante. Reagimos mais do que refletimos. Absorvemos mais do que transformamos. Sinais dos tempos!
É importante acreditar na força criadora do povo, nesta génese da necessidade que sempre fez nascer soluções, cultura, arte, convivência. Um embrião difícil porque exige escuta, tempo e cuidado. Mas é ali, entre a sabedoria popular e a ousadia dos artistas e transformadores culturais, que encontramos a possibilidade de um novo ato: um produto com alma, que não abdica da memória, mas que sabe metamorfosear-se com modernidade. Porque a verdadeira política cultural identitária nasce aqui. Na escuta, na cooperação, na capacidade de acreditar juntos, que ainda vale a pena.
Fico desconsertado com certas vozes, nos bastidores, nos corredores, nas redes sociais, em cafés ou em debates pouco informados, que tudo é feito de forma avulsa, sem critério, sem linha condutora. Falar com amigos, conhecidos e ouvir o debate na Rádio Altitude sobre a cultura do município da Guarda, levou-me a refletir e deixou-me, ao mesmo tempo, satisfeito e inquieto. Satisfeito porque o tema mereceu espaço de antena, o que não surpreende vindo de quem dirige a rádio, inquieto porque, apesar de alguns bons contributos, persistem, por vezes, numa análise superficial, críticas genéricas e uma escassez de propostas concretas.
Mas, quando se debate cultura, importa sair do ruído e mergulhar na realidade concreta do que se faz e há muito que se faz. É evidente que há eventos que se cruzam e outros que não. Não será isso saudável? Não existe um único modelo válido de criação e programação cultural. Não será essa diversidade precisamente o território onde a liberdade criadora encontra expressão autêntica, tanto em quem a faz como em quem a recebe? Há lugar para o teatro, para a poesia, para a música popular e erudita, para a fotografia, para a arte urbana, para o cinema, para a tradição e para a inovação; para artistas consagrados e emergentes, locais, nacionais e até internacionais. Veja-se, por exemplo, as muitas iniciativas que, com poucos meios, vindos da autarquia, das freguesias, dos bairros, das diversas associações, continuam a florescer. Oficinas, “workshops”, encontros intergeracionais e pequenos eventos culturais que, longe dos grandes palcos, se afirmam nos pátios, nos claustros, nas praças e nos cafés. É nessa proximidade, feita de persistência e paixão, que resiste e dá corpo ao verdadeiro espírito do concelho da Guarda. Dá a sensação que temos vergonha de assumir esta realidade, seja por motivos partidários ou por acharmos que os nossos gostos prevalecem perante os outros!
Continua-se a falar dos famosos milhares de euros da Direção-Geral das Artes, recusados por se entender que impunham um modelo fechado, centralizador e pouco representativo da diversidade cultural local. É um argumento que deve ser levado a sério, o dinheiro, quando traz amarras, pode sair caro. Os Homens das artes, infelizmente, sabem disso! Ainda sobre o debate, ficou também claro, de forma unânime, que o SIAC, um marco ímpar da arte local para o mundo, e vice-versa, infelizmente não era sustentável no formato anterior; ouvi com convicção quase profética, que a candidatura da Guarda à Capital Europeia da Cultura era uma causa perdida e, ainda assim, criticaram-se os que decidiram não avançar de forma sólida. Fazer só porque sim não é cultura, é vaidade com prazo de validade. Talvez o gesto mais ousado tenha sido justamente “recusar” uma corrida sem fôlego. Não se constrói futuro com candidaturas simbólicas!
Sim, pode e deve fazer-se muito mais. Reconstruir-se com visão, com vontade, com risco, ir às entranhas e simplicidade das pessoas e brindar com o que temos de bom. E isso, goste-se ou não, tem existido. O que não tem existido é a presença dos que mais criticam. Porque, na verdade, não aparecem. Não se misturam. Não conhecem, mas opinam. Não assistem, mas julgam. Esses são os verdadeiros arautos do saber: omnipresentes e omniscientes, mas sempre à distância. Ou então visionários de sofá, para quem uns “reels” basta para tudo.
A cultura agradece a crítica construtiva. Mas rejeita a crítica fácil, estéril, feita por quem só sabe dizer mal. É preciso ideias. É preciso corpo, tempo e presença.
E se, no fim de tudo, ainda houver dúvidas… comamos umas sardinhas e uns pimentos. Falar de estômago cheio talvez ajude a pensar antes de falar e assim digerimos melhor a crítica, o risco e a presença. Porque cultura para além do espetáculo é gesto, é persistência. É também silêncio respeitador diante de quem, mesmo com pouco, continua a fazer muito.