Assim, não é de admirar que aqui chegássemos

Escrito por Fidélia Pissarra

Não sei o que é que aconteceu durante os últimos 40 anos para passarmos de gostar das canções com versos como “Bebe-se coragem até dum copo vazio”, a consumir, desenfreadamente, canções com versos como “Pronto a morrer no teu fogo”. O certo é que se o velho “no meu tempo é que era bom” não me impedisse, diria isso mesmo: no meu tempo é que era bom. Nem me importava que dissessem que parecia a avó, quando reclamava da qualidade da fruta. Pois, embora na altura ainda o não soubesse, ela até tinha razão. A fruta, que ela comia, não era apanhada na África do Sul sem qualquer dose de sol para aguentar a viagem. A fruta que ela comia era apanhada perto, no ponto certo de maturação. Mas como o meu tempo também é este, por essas, e por outras, o melhor é não dizer. Até porque só durante algum do meu tempo é que a fruta foi menos má e as canções, ouvidas pela maioria, na minha opinião, muito melhores do que as de hoje. Por isso, até dou de barato que o mais acertado seja dizer que ao longo de algum do meu tempo a maioria das pessoas terão sido muito melhores do que agora são. No mínimo, estando mais viradas para melhores versos, haverão de ter sido mais racionais e reflexivas.
Talvez por, afincadamente, procurarem as melhores palavras para pensar as coisas em que era preciso pensar e, mais preocupados com as respostas que procuravam, do que com “spoilers” e unhas de gel, não davam por perdido o tempo que levassem a encontrá-las. Julgo que durante algum do meu tempo, que não este, as pessoas preocupavam-se, seriamente, em ser melhores. Cuidavam de moldar o próprio pensamento com palavras e ideias intencionalmente descobertas nos livros que liam, nas músicas que ouviam e na informação que procuravam consumir. Acima de tudo, orgulhavam-se de assumir comportamentos, atitudes e compromissos com sentido. Assentes no saber, na ciência e no humanismo.
Quando assim era, não digo que não houvesse ataques, como o recentemente acontecido na Guarda, contra um jovem estrangeiro – ataques, aos que consideramos mais fracos, sempre os houve –, o que seria mais difícil, muito mais difícil, julgo, era darmos de caras com alguém com dificuldades em repudiá-lo. Perante um ataque, ignóbil, covarde, racista e xenófobo a um jovem estudante do IPG, damos, pelo menos, por duas tentativas de normalização para cada cinco manifestações de repúdio. Desde alegarem atos agressivos, perpetuados por estudantes estrangeiros sobre estudantes nacionais, a acusarem o IPG de só pensar em “empregos” – como se ter emprego, contribuir para o desenvolvimento da cidade e da região fosse crime – quando aceitam e defendem, e bem, estudantes “destes”, de tudo foram capazes os que não conseguiram encontrar no sucedido algo de muito abjeto e condenável. Sabiam bem que o rapaz não fez mal a ninguém, mas não acharam mal de todo que “pagasse” por ser estrangeiro, dando a entender que não querem cá estrangeiros e que, na hora de o expressarem, qualquer coisa vale.
O que, num país de tantos turistas internacionais e emigrantes, não pode deixar de ser paradoxal. Há portugueses que acham que tanto direito têm a ser tratados condignamente, quando viajam e emigram para outros países, como a tratar mal qualquer estrangeiro que, sob qualquer das duas condições, aqui aborde. Caso para dizer: oxalá que o “Pronto a morrer no teu fogo” não venha mas é a ser vítima de um pirómano entusiasta.

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Fidélia Pissarra

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