O Natal é quando um homem quiser?

Conheci-o desde os princípios dos tempos. Senti-lhe a rugosidade das mãos calejadas de canseiras de uma vida quando me dava o diário «passou-bem» bem apertado. «É assim que os homens se cumprimentam», dizia naquela sua voz simultaneamente máscula e prenhe de afeto. E a minha mãozita de petiz quase acabado de desmamar perdia-se na sua enquanto olhava para cima, para uns olhos negros e brincalhões a que se juntava um sorriso franco e aberto. Sentia-me, lembro-me bem, liliputiano em terra de gigantes…
Mas como eu gostava de o procurar nas noites intermináveis de Inverno, bem frente à lareira «para não deixar fugir o lume», enquanto lá fora o vento assobiava nos galhos das árvores agora despidas e esqueléticas e uma geada de alto lá com ela caía mansamente estendendo o seu manto branco nas terras em redor!… Como gostava quando ouvia o seu assobio inconfundível na rua!… Era o sinal. O sinal que, sem que nunca o disséssemos, sabíamos ser o do princípio de um serão sempre único e fantástico. Bem agasalhado e de candeeiro na mão que a noite estava de breu, quem nos visse a atravessar o povo de cabo a rabo não deixaria de matutar em lobisomens, almas penadas ou coisas assim…
Depois, bem depois, era um desfiar sempre novo de memórias: lendas de mouras encantadas ou histórias de faca e alguidar que se vendiam a tostão nas feiras, apregoadas por cegos sempre acompanhados de meninas maltrapilhas e de mão estendida à caridade dos passantes.
Todavia, o que mais impressionava um puto de meia dúzia de anos mal contados era aquilo que depois aprendi serem histórias de vida. Dos tempos em que, nos anos negros da Grande Guerra, passava horas na fila, de senha na mão, à espera de uns grãos de arroz ou de uns pozitos de açúcar que senhores de fato escuro, altaneiros na pose, distribuíam quase por caridade. Dos tempos em que trabalhava, de sol a sol, nas terras dos mais afortunados por uma côdea de pão e um punhado de batatas que enganariam a fome aos filhos. Dos tempos em que, mal iniciados os anos 60, teve de «fugir à tropa» “a salto” para França por montes e vales de um mundo que lhe era desconhecido e avesso. Desses tempos que o levaram aos “bidonvilles” de cidades que não conhecia e de gentes que não entendia.
Essas histórias sim, essas prendiam-me a atenção e, de quando em vez, empurravam para a face uma lágrima que teimava em sair.
Estou agora a vê-lo a puxar pelo relógio de bolso preso à presilha das calças e abanar a cabeça como que lamentando o depressa que o tempo passa. Aconchegava então a gola da samarra, de pele de raposa que ele mesmo caçara, enterrava a boina basca um pouco mais e levantava-se com um ranger de ossos, «é o reumático, menino», e era o epílogo de horas bem passadas.
Quase como sumário de um ror de trabalhos de uma vida inteira, ainda desabafava, num dos serões de que melhor me lembro, numa das noites da época em que o Menino nasceu:
– Ainda dizem que o Natal é quando um homem quiser!!!… É bem mentira. Nunca te esqueças que o teu Natal, mais do que quando tu quiseres, é quando os outros quiserem que seja.
As coisas que se aprendem fora da escola com quem nunca, sequer, por lá gastou os tamancos…

Sobre o autor

Norberto Gonçalves

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