Mudar o país (mesmo que Lisboa não queira)

Dois anos depois do flagelo de 15 de outubro, a boa notícia foi a nomeação de uma ministra, do Poço do Canto (Mêda)

Dois anos depois dos incêndios de outubro de 2017 continuamos a viver o pesadelo daquela noite em que o fogo foi mais forte que a natureza, que a morte perpassou o Centro, que o campo ardeu e tantas pessoas morreram. Dois anos depois, devemos recordar, em memória dos mortos, mas também em defesa dos vivos. Dois anos depois, continuamos à espera que a região se reerga, que as casas se reconstruam e que as pessoas possam continuar a viver nas suas aldeias e vilas. Mas dois anos depois, mesmo sabendo que a solidariedade foi intensa, que o investimento na recuperação foi milionário, que as lágrimas já secaram e que o verde regressa aos campos, as serras continuam abandonadas, a reflorestação segue adiada, o investimento não gera riqueza, o despovoamento continua e o futuro é uma quimera.
Enquanto o país vive tranquilo, entre a azáfama de Lisboa e a distância do Porto, entre as diferenças políticas e as tricas governamentais, entre os 25 mil milhões injetados na banca e os milhões doados à CP, entre os sorrisos de Costa e o silêncio de Rio… Não podemos esquecer que em 2017 morreram dezenas de pessoas por entre as labaredas de um flagelo anunciado, de um território abandonado, de um país deixado para trás. O interior resiliente que sobreviveu ao dia 15 de outubro de 2017, sabe que a tragédia está escondida entre a penumbra do ostracismo a que foi votado, e sabe que qualquer dia o flagelo vai regressar. Pode ser num dia 15 ou noutro dia qualquer, pode ser pelo fogo ou de outra forma, mas será sempre pelo despovoamento, pela desertificação, pela morte do mundo rural. Recuperamos o edificado, mas aumentamos o combustível para a partida: sem um plano integrado de desenvolvimento e geração de emprego e riqueza o interior será um barril de pólvora cada vez maior.
Ana Abrunhosa, que agora vai ocupar funções ministeriais, conhece esta realidade, sabe que não basta espalhar gestos de otimismo, que é preciso semear para colher. Ao contrário do que ocorreu com a secretaria de Estado para a Valorização do Interior, que foi plantada em Castelo Branco (agora já com número de telefone) para mostrar uma descentralização avulsa, equívoca e inadequada, o Ministério da Coesão Territorial tem a obrigação de mudar o paradigma da gestão do território. Pode até haver a necessidade de clarificação entre o objeto do Ministério do Planeamento e a missão do Ministério da Coesão, mas conhecendo o percurso e o pragmatismo de Ana Abrunhosa, temos de ser otimistas sobre os próximos passos da coesão territorial, num país tão desigual, e sobre as políticas de desenvolvimento regional. Não será tarefa para uma legislatura, nem experimentaremos mutações imediatas (ainda que as expetativas exijam medidas urgentes), mas, como diria Machado, o caminho faz-se caminhando. Por estranho que pareça, dois anos depois do flagelo de 15 de outubro, a boa notícia foi a nomeação de uma ministra, de uma mulher abnegada e lutadora, de uma beirã alto-duriense de Vale do Porco, anexa de Poço do Canto (Mêda), para um ministério que tem de desencravar o interior e construir um novo país, o país como um todo (mesmo quando, em nome da verdade, é necessário «gerir o declínio» porque «há partes onde não vai ser possível recuperar população e atividade»).

Sobre o autor

Luís Baptista-Martins

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