Até aqui, a maior parte de nós, quase todos, lutámos e afadigámo-nos para atingir aquilo que nos disseram ser uma situação. No caso, a nossa. Segundo o que nos era ensinado, desde muito tenra idade, bastava esforçarmo-nos um bocadinho, estudarmos alguma coisa e trabalhar muito para alcançar um futuro. Promissor e inabalável. Sempre que tal não acontecesse, acontecesse demasiado tarde ou demasiado cedo, acabava por ser uma tragédia. Uma vez conseguido, teríamos conquistado a nossa própria vida, quando, na realidade, apenas contribuíamos era para a vida (boa) de quem pouco se importa com as preocupações em que nos afogamos de manhã à noite e nunca parou de procurar soluções menos onerosas e problemáticas do que nós.
Tanto procurou que, finalmente, parece tê-las encontrado na IA (inteligência artificial) e num governo muito predisposto a ajudar a despachar-nos sem apelo nem agravo. Sem que nada o fizesse prever, pois nem houve quem o percebesse nas propostas da sua campanha eleitoral, vemos a boa da nossa alegada situação prestes a esfumar-se por entre “mercados dinâmicos e oportunidades reais”. Como há muito desconfiávamos, sem nunca querer saber grande coisa disso, o nosso trabalho, qualquer que ele seja, afinal pode ser feito por máquinas. Muito mais previsíveis, programáveis e, ainda por cima, muito mais baratas, porque nem requerem aumentos salarias, nem reforma de velhice. As máquinas vieram mesmo para fazer o que até agora temos feito. Aos patrões resta, por isso, garantir que qualquer empregado possa vir a ser rapidamente descartado e substituído pelas belas das máquinas. De preferência sem custos ou ilegalidades.
Ora, para pormenores destes, nunca os fãs dos “mercados” e os adeptos das “oportunidades” nos faltaram e, pelos vistos, com a nossa ajuda, nunca nos faltarão. Logo, embora nos possamos indignar, com as atuais propostas desta Lei Laboral que nos querem impingir, não nos podemos admirar por existirem. Pois acabarão por ser mais o resultado da displicência com que temos encarado a riqueza e honrarias acumuladas pelo assíduo e escrupuloso exercício dos velhos comentadores, recentemente transformados em influenciadores, do que pelo jeito dos próprios para a coisa. Começaram por nos convencer a vermo-nos como alguém que não cumpre os requisitos da existência e acabaram a esperar que nos continuemos a arrastar como coisa morta, que é o que acontece quando a forma em que nos tentam encarcerar não é a nossa e, ainda assim, a podemos ver.
Porém, quando percebemos que quem nos agarrara a alma para que obedeçamos a obrigações que não são nossas, e passemos a aceitar decisões contra nós próprios, não quer saber de nós para nada, dificilmente seremos de deixar que assim continue a acontecer. Sabemos ou deveríamos saber que sempre que deixámos de nos querer comparar com os deuses modernos e desistimos de querer correr a pontapé quem realmente são, ganhámos. Infelizmente, nos últimos tempos, isso só tem acontecido através das penosas e angustiantes situações alheias que, quotidianamente, dão em invadir-nos a existência. Mas agora que a tragédia de, no trabalho, poderemos vir a ser substituídos por uma máquina a qualquer momento, sem direito a reivindicar o que quer que seja, está prestes a atingir-nos, talvez nos dê para pensar duas vezes no que é que temos andado a fazer quanto à nossa suposta situação.


