Escriturras

No último mês, muitos cidadãos se insurgiram e criticaram decisões judiciais justificadas com passagens da Bíblia e política criminal comparada. Considero, no entanto, que a polémica é inusitada e descabida, porque a Bíblia e outras mitologias transportam o peso dos arquétipos aos ombros. E estes arquétipos, vem no Jung, são uma espécie de sobretudo quentinho que nos aquece no Inverno e nos faz transpirar quando estão 20 graus em Março.
Com o objectivo de promover a cidadania informada, vejamos alguns exemplos que podem ajudar os juízes portugueses a tomar decisões apenas com a ajuda do Antigo Testamento, para granjear uma maior atmosfera de classicismo.
Num caso de facturas falsas, o juiz deve absolver os envolvidos, porque está escrito, em Salmos, 128:2, «pois comerás do trabalho das tuas mãos; feliz serás». Falsificar documentos para ganhar dinheiro é, precisamente, comer do trabalho das mãos. Irá, por isso, o réu, em paz e feliz.
Num caso em que um operário roube o salário de vários colegas de trabalho para passar férias na Riviera francesa deve o juiz abster-se de qualquer pena, como explica Provérbios, 19:4, «as riquezas granjeiam muitos amigos, mas ao pobre, o seu próprio amigo o deixa». Quer isto dizer que quem não tem Facebook, não pode pedir amizades. Saia, portanto, em liberdade.
Num caso em que um grupo de irmãos enfiar uma saraivada de tiros no sacana que dormiu com a irmã deles, deve o juiz condenar o patife sexual e ilibar os ofendidos, porque conta Génesis, 34:7, «entristeceram-se os varões e iraram-se muito, pois aquele fizera doidice, deitando-se com a filha de Jacob, e que não se devia fazer assim». Aconselhe-se a deixar em paz as filhas dos outros e aponte-se o exemplo das filhas de Loth, em Génesis, 19:32, «demos a beber vinho ao nosso pai, e deitemo-nos com ele». Absolvam-se os irmãos.
Nos casos em que meritíssimas pessoas se sintam ofendidas com as palavras dos tolos e dos idiotas que brincam com a sua reputação e parodiam outras coisas igualmente sérias, como textos sagrados, deve o juiz castigar esses palhaços com a pena máxima de degredo, pois está bem claro no Eclesiastes, 10:13, «o princípio das palavras da sua boca é a estultícia, e o fim da sua boca um desvario péssimo». Às bocas sujas, nem a lixivia lhes vale.
Como se pode ler, humildemente, em Neemias, 5:19, «lembra-te de mim para bem, ó meu Deus, e de tudo quanto fiz a este povo».

* O autor escreve de acordo com a antiga ortografia

Sobre o autor

Nuno Amaral Jerónimo

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