Da portugalidade ao humanismo

Sem surpresa, os discursos do Dia de Camões, de Portugal e das Comunidades Portuguesas falaram contra os extremismos, o racismo e a xenofobia. Tendo Lagos como palco das comemorações, no derradeiro discurso do 10 de Junho enquanto presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa sublinhou a diversidade enquanto virtude do país, ao enfatizar que «não há quem possa dizer que é mais puro e mais português que qualquer outro». Mensagem que seria replicada por Lídia Jorge, num tempo em que os discursos nacionalistas e anti-imigração vão dominando o espaço público.
Lídia Jorge, presidente da comissão das comemorações do Dia de Portugal, partiu de Luís Vaz de Camões e do papel central de Lagos, onde se inaugurou «o tráfico negreiro intercontinental em larga escala», para fazer paralelismos com o tempo de hoje e dizer que a cidade algarvia mostra esse passado ao mundo para que «nunca mais se repita». «Nos versos escritos há 500 anos (nos “Lusíadas”) encontramos referências sobre os tempos duros que atravessamos», destacou a escritora. «Camões, como nós, conheceu uma época de transição, e fez avisos explícitos sobre a crise que se vivia então». A escritora algarvia fez a catarse sobre o passado esclavagista português e recordou que «a falácia da ascendência única não tem correspondência com a realidade: cada um de nós é uma soma, tem sangue do nativo e do migrante, do europeu e do africano, do branco e do negro e de todas as cores humanas», para concluir que «somos descendentes do escravo e do senhor que o escravizou».
Foram discursos corajosos, os de Marcelo Rebelo de Sousa e Lídia Jorge, em tempos de incompreensível radicalismo e divisão dos portugueses. Discursos intensos, que merecem ser lidos e relidos, pela beleza e qualidade literária, mas também pela mensagem e alertas sobre a loucura do poder e as «fúrias revisionistas», quando «o poder demente, aliado ao triunfalismo tecnológico, faz que a cada dia, a cada manhã, ao irmos ao encontro das notícias da noite, sintamos como a terra redonda é disputada por vários pescoços em competição, como se mais uma vez se tratasse de um berloque» (Lídia Jorge).
Precisamente há 48 anos, nas primeiras Comemorações do Dia de Camões e das Comunidades Portuguesas depois da “Revolução dos Cravos”, no dia 10 de junho de 1977, na Guarda, na presença do então Presidente da República Ramalho Eanes, numa jornada em que Vergílio Ferreira também foi orador, Jorge de Sena deixou para sempre a mais eloquente dissertação sobre Camões e a portugalidade, no “Discurso da Guarda”: «O celebrar-se no presente e no passado em sua gente, o homenagear essa gente e recordá-la aonde quer que viva ou tenha vivido é um imperativo imarcescível da dignidade humana, num dos aspetos que a representa: o pertencer-se directa ou indiretamente a um povo, uma história, uma cultura, que como no caso de Portugal, foi, é e será capaz de diversificar-se em outras. Nenhum internacionalismo que se preze de ter os pés na realidade e na matéria de que somos feitos, pode negar ou ignorar essas realidades tremendas que são uma língua ou muitas, uma raça ou várias, uma cultura por mais adaptável ou capaz de absorção que ela seja, que se identificam com um nome secular – Portugal no nosso caso, aqui e agora».
Na cerimónia do Dia de Portugal de 2025, Lídia Jorge fez o elogio da «mistura», num apelo ao humanismo e na defesa da «soma», porque «aqui não há sangue puro» ainda que haja «loucura» do poder. Um discurso integrador e que contraria a estranha vontade de dividir. Podemos concordar ou discordar, mas ser português é isto…

Sobre o autor

Luís Baptista-Martins

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