A inutilidade das coisas

Escrito por Maria Afonso

Devia ter quatro anos. Uns dias antes do Natal a mãe dividia com ela um segredo. As cartas eram demoradas e nem sempre chegavam a tempo de comunicar o regresso do pai. Nessas tardes, em que a noite caía no seu tempo devido, saíam de casa e, de longe, aguardavam a paragem da carreira. Ninguém as poderia ver. Só elas entendiam o amor que lhes ocupava o peito. No escuro analisavam um a um todos os passageiros que se apeavam. O pai havia de usar uma boina, isso ela sabia. Voltariam nas tardes que se seguiam, cúmplices naquele admirável segredo.
– Olha, é o pai! – os corações celerados e os sorrisos expostos a ocupar aquele espaço infinito que só um abraço pode conter.
O chão pintar-se-ia de uma fina gaze branca e os pés fariam estalar pequenas palhas enrijecidas. Os homens, vestidos de samarras com pele de raposa, juntavam-se à porta da sua casa. Conversavam lado a lado, de frente para o sol que dali a pouco substituiria o branco frio da terra batida por uma humidade xistosa. Os homens queriam ouvir novidades. Como era viver para lá das fronteiras. E o pai contava histórias que incentivavam novas questões. Ela ouvia, embevecida, sem se importar em saber que àquela gaze branca chamavam geada. O pai era grande demais e isso bastava.
O Natal aproximava-se numa franca serenidade. Nesse ano o pai trouxera as figuras centrais para um presépio nunca visto. Os três camelos, sem rei algum, revestidos de uma quase pele de pêssego tinham o poder dum bálsamo singular. Não pisariam areias de desertos quentes, mas teriam o privilégio de uma cama de musgo verde humedecido. Um pequeno pinheiro no lugar de palmeiras. Nesse tempo, nessa terra, poucos saberiam da existência de palmeiras. Os desertos eram impraticáveis dentro de cada um. Todos se sentiam completos. Quem importava estava ali, ao lado. Ninguém tinha morrido. A morte era uma palavra sem rosto.
A avó acendia o lume na lareira grande. Como uma alquimista, adicionava ingredientes num barranhão e amassava com aquelas mãos que de qualquer coisa faziam prodígios. O cheiro adocicado a azeite quente e açúcar preenchia a casa. Comentava-se que fazia frio e que ainda cairia neve. Mas o frio era exterior. A casa tinha a idade de um regaço intemporal. Sentava-se nos joelhos do pai e, com a naturalidade implícita a uma vida raiana, surgiam as brincadeiras em espanhol – tengo buena barba? Por aqui, por aqui – e zás, lá se deixava de novo apanhar, distraída, pelas palmadinhas nas mãos. E riam imensamente.
Como se fosse a única a colocar o sapatinho junto à chaminé, adormecia numa vigília inquieta. A manhã acordaria lá fora num silencioso manto de neve. Junto à lareira os presentes transpunham o sapatinho. Os chapéus-de-chuva e as pinhas de chocolate em pratas coloridas serão para sempre a fronteira do Natal. Jamais deixará de sentir o toque da lã daquela saia Kilt e o brilho do alfinete dourado que a prendia. Mas o menino Jesus em marshmallow, (saberia o nome muito mais tarde) deitado sobre uma cama de chocolate oco foi a verdadeira revolução do natal.
Percebeu que o mundo não se afilava entre a encosta de uma serra e o vale de um rio. Quando o pai partiu a mãe não dividiu com ela qualquer segredo. Soube, então, da melancolia que cerca as despedidas. Tempos depois reunir-se-iam para lá das fronteiras. Voltariam a despedir-se. Juntar-se-iam novamente. Foram-se ajustando os natais. Foram-se ajustando aos natais. Mas houve um ano em que a carreira chegou vazia. Ninguém a esperava às escondidas. O amor transformou-se numa força estranha. Mas deixou de acreditar na magia do sapatinho. Deixaram de fazer meninos Jesus em marshmallow deitados em camas de chocolate oco.
Lembrou-se das fotografias em que aparece, tão feliz, junto daquele presépio. É urgente procurá-las. Revê-las. Lembrou-se dos camelos de pele de pêssego. A última vez que os vira descansavam numa caixa esquecida. Sente a urgência de uma prova física desse Natal. Fecha os olhos como se lhe fosse permitido voltar atrás no tempo. Por um instante sente o poder de cada voz. Olha a cidade pela janela dizendo para si mesma – pode ser que amanhã neve.

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Maria Afonso

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