A Inutilidade das Coisas

Escrito por Maria Afonso

Voltar aos dias de chuva. Às memórias daquelas manhãs em que um som branco e húmido sacudia as vidraças e embalava os corpos por dentro dos lençóis. Os cobertores quentes amaciavam o ar e uma melodia minimalista ia compondo pequenas súplicas para que o tempo se alongasse. Um minuto mais continha o poder da regeneração. A cama era uma espécie de tina do renascimento e, na posição fetal, experimentava-se a água tépida do ventre materno.
Tudo é quietude. Pingas perfeitas soltam-se do céu monocromático. Sai-se para a rua e apetece erguer os olhos, abrir a boca e fazer da língua um cântaro. Uma fonte de mergulho a assomar nos olhos serena a frescura que um verão distante buscara. O fogo imprudente sabe ter chegado o tempo de retornar ao mundo das trevas. Uma ou outra noite relâmpagos enxutos dirão do seu poder. Homens atemorizados fecharão as janelas para se esconderem da luz. Nada saberão de faíscas nem de rezas a Santa Bárbara.
A cidade é bela com chuva. Caminhantes apressados ignoram o rasto cintilante que deles se aparta. Os charcos de água onde se deleitaram na infância são agora poços escuros e fundos onde ninguém se vê ao espelho. Já não se experimenta adivinhar o futuro nas suas águas. Passam vorazes pela chuva como se temessem que um ácido lhes corroesse, a qualquer momento, alguma parte do seu corpo. Há que olhar para o chão e seguir em frente. Mas se num momento ousassem virar o rosto, saberiam do seu reflexo disseminado na calçada molhada.
Artistas pintam a chuva na cidade e, numa comunhão com a natureza, expõem as telas na praça. Que a chuva as marque de um impressionismo verdadeiro. As suas mãos desmancham-se num louvor impaciente. Velaram noites e dias na expectação das cores certas. Sabem extrair da penumbra a luz. Poetas correm desnorteados. Dobram esquinas e saltam valados sem reconhecerem o que lhes vai dentro. Nem sempre é fácil expulsar palavras que declarem que um dia de chuva pode ser tão belo como um dia de sol.
Nuvens espessas são colunas a suportar um templo. Lêem-se nos frisos, entre métopas e tríglifos, narrativas de um mundo onde a secura fragmentou o mármore. Alguns vestígios policromos assomam entre uma nuvem mais sombria e a fulgência etérea de um véu. Crê-se no olimpo e na eternização dos homens. Um leve arco-íris afronta navios de madeira, espectadores de ancestrais batalhas navais, que trazem na proa a inquietude de Ulisses.
O céu ameaça cair. Os transeuntes continuam a passar por dentro da cidade. Ninguém repara no homem que capta o instante numa velha polaroide. As imagens terão a matiz da melancolia. Palavras trocadas por uma paleta de cores esquecidas. Mãos gretadas pela secura da terra. Granito sedimentado nas paredes das casas.
Um gato, atrás de uma cortina de renda envelhecida, vigia o retorno da chuva. Não é notado, mas só ele consegue ver a menina de dedos alongados à espera que cada gota se torne numa lagoa demorada.

* A autora escreve de acordo com a antiga ortografia

Sobre o autor

Maria Afonso

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