O Sr. António, há 50 anos

Era um homem franzino, sorridente, disponível e com uma energia surpreendente. Trabalhava de sol a sol, porque era assim o conceito de trabalho rural na época. Lembro-me dele ao domingo, com a sua melhor roupa, passava lá por casa para receber o dinheiro fruto da jorna semanal. Não havia recibo, não havia descontos, aquilo que recebia não era o real rendimento daquele trabalho, mas era o que aquele trabalho rendia naquela forma de trabalhar a terra. Como era precária e sazonal, era partilhado com mais casas agrícolas, o que permitia que sobrevivesse uma boa parte do ano. Em janeiro vinha a poda, trabalho especializado e de saber, dele dependia a produção do ano, mas principalmente o futuro da cepa, logo de seguida cavava-se e depois vinha a aplicação de sulfatos, enxofres e outros que tais, a limpeza dos pinhais, as batatas e por fim a vindima, a pisa e a trasfega para os tonéis. Com ele vinham mais dois irmãos, homens também de trabalho, mas sem a disponibilidade do António, este era da casa e a forma de o distinguir era oferecer a melhor refeição do dia, mercearia e alguma roupa já usada, mas em bom estado, que distribuía pela família. Tinha mulher e dois filhos. Confiávamos-lhe a chave de casa e a da adega, um verdadeiro capataz. Apesar de tudo era e estava feliz.
Estávamos num período em que a construção civil e a emigração eram uma tentação para estes homens mal pagos e de alguma forma escravos do trabalho. Um ministro da economia da época afirmava que das aldeias partiam os melhores ficando os que pouca utilidade tinham. Mas ficavam também os que tinham menos arrojo ou menos coragem de partir para um mundo novo, e se acomodavam. Os mais críticos de então descreviam estas terras de oportunidades como um novo “el dorado” cheio de espinhos.
Corria o ano de 1969, parecia que tudo já tinha acontecido, um jovem estudante suicidava-se em Praga em protesto contra a invasão russa que assim pôs cobro á chamada “Primavera” do ano anterior, porque em terras do Pacto de Varsóvia só podia haver Inverno. Do outro lado do mundo, os Estados Unidos pela mão de Nixon, entre manifestações e derrotas em toda a linha, manifestavam o desejo de se retirar do Vietname minimizando as perdas, o mesmo Nixon que em plena guerra fria colocava Armstrong na Lua, para gáudio de quem o ouviu exclamar, «um pequeno passo para o homem um enorme passo para a humanidade». Em 1969 o rio Rouge, em Detroit incendiou-se e pegou fogo a um tanque de petróleo, como as coisas aqueciam, Jim Morrison foi detido por ter exibido os órgãos genitais durante uma atuação dos Doors em Miami, e em que os Beatles com um final anunciado gravaram o último álbum, de nome “Abbey Road”, logo após o lançamento do “Yellow Submarine”. Em contrapartida o Woodstock juntou a paz, o amor, o LSD e a música, aquecendo ainda mais o Verão, deixando uma marca ao longo de gerações.
Por cá, a Academia de Coimbra de luto, travava uma luta política que abalou e deixou marcas no poder de então e, em contraciclo, o futebol da mesma academia chegou à final da Taça de Portugal no Jamor, o resultado do jogo só interessou ao Benfica porque o resultado mais importante foi a TV não ter feito a transmissão, mas a maior vitória foi a ausência de Américo Thomaz no camarote do Jamor. Afinal a ditadura tinha debilidades. Tal como os EUA no Vietnam, Portugal, à sua dimensão, tinha a mesma realidade com a contestação de vários quadrantes e uma derrota com sofrimento anunciado (havia 160 mil jovens em África, tornados militares à força e metade do Orçamento do Estado era gasto na guerra). No mesmo ano em que Simone cantava, a plenos pulmões, “quem faz um filho fá-lo por gosto” e os “1111” editavam o LP “Génese”, foi também o ano do “Zip Zip”, na RTP, com Carlos Cruz, Raul Solnado e Fialho Gouveia a fazerem pela primeira vez em Portugal um “talk-show” que prendeu metade do país à TV, identificando uma Primavera dita liberal. Realizaram-se eleições com a presença da CDE e CEUD, numa manifestação de boa vontade para inglês ver, brincando às democracias, mas delas resultaram dois factos muito importantes: na Assembleia Nacional entrou a Ala Liberal, onde se destacariam Sá Carneiro e Pinto Balsemão, e as mulheres votaram pela primeira vez.
Nesta altura, Marcelo Caetano conversava em família na TV e Salazar ainda estava convencido que era Presidente do Conselho. As mulheres portuguesas passaram a poder sair do país sem autorização do cônjuge e, em novembro, a lei permitiu que os contratos de trabalho fossem considerados válidos, sem o aval masculino. O homem continuava, porém, a ser o único administrador dos bens do casal e a ter direito a abrir a correspondência da mulher. O mesmo ano em que a terra tremeu durante a madrugada, naquilo que foi o último grande sismo sentido em Portugal.
Joaquim Agostinho terminou a Volta em primeiro lugar, mas foi desclassificado por doping. Antes do Verão, Linhares Furtado executava na perfeição o primeiro transplante de órgão vital em Portugal. Foi também um dos anos com menos incêndios florestais.
Um ano fantástico este.
Estávamos em outubro e a atividade da vindima havia terminado, adivinhando-se três meses sem rendimento líquido. Nesse mesmo ano Zeca Afonso editou o álbum “Contos Velhos, Rumos Novos” e nele contido a canção “Qualquer Dia”, embora não acreditando que o Sr. António alguma vez o tenha ouvido, mas sem dúvida representaria o que lhe ia na alma. Escolheu um domingo para anunciar a despedida, os detalhes envoltos em segredo absoluto, sabia-se apenas que iria de comboio até à Guarda e daqui a pé para cruzar a fronteira. Tarefa difícil e arriscada. Atravessou a Espanha, ora de boleia ora a pé, caminhando durante a noite, fugindo da Guardia Civil, como se fosse um homicida perigoso em fuga, o destino era Hendaia. Passados uns meses de angústia chegaram notícias. O Natal passou-o numa aldeia próximo dos Pirenéus, havia sido encontrado desmaiado e desnutrido, por um homem que trabalhava num poste, detido e depois recolhido por um sacerdote, por ali foi ficando a fazer o que sabia, ora podava sebes ora semeava flores. Uma vida de resiliência. Regressou passados 25 anos. Durante este quarto de século muito aconteceu… Trazia com ele a alegria e a genica de sempre, alguma tristeza, um BMW 1600, um pequeno trator usado, mas principalmente uma reforma vitalícia doze meses por ano, pensando bem esse fora o principal motivo para partir, porque o ano tem doze meses e o dele em 1969 só tinha nove.
Ficámos felizes com o regresso. Mas trabalho já não havia. As vinhas tinham acabado, os terrenos estavam ao abandono, os pinhais acumulavam caruma, tojo e outro material combustível, tudo tinha mudado, até o país.
O Sr. António tinha merecido muito mais, era daqueles homens trabalhadores que se adivinhava que emigrando teriam sucesso obrigatório, mas afinal mudou-se de uma aldeia para outra e a ambição esgotou-se na longa caminhada de enorme sacrifício a atravessar Espanha. Regressa sem glória ou sucesso. Não construiu a casa tipo “maison” que ambicionara, o trator esforçava-se para rasgar a terra, a esposa faleceu, o filho adoeceu, nunca tirou a carta e o BMW apodreceu no quintal.
De 1969 restava a memória de um ano fantástico, de descobertas, de revoltas, de ação, de contestação, de mudanças, de despertares, sem dúvida o ano que mais ajudou para a mudança política e social do Portugal dos nossos dias. E, claro, a emoção da despedida para um mundo novo embora desconhecido.
Sem dúvida cada um destes emigrantes ilegais só o foi com a conivência do Estado português, ávido dos francos para injetar na débil e atrasada economia, mas também com a conivência do Estado francês a necessitar de mão-de-obra em esforço, barata e habituada a obedecer.
No ano seguinte José Cid e o Quarteto 1111 editavam duas canções de crítica social sobre a emigração portuguesa, o “Domingo em bidonville” e “João nada”.
O Sr. António nunca ouviu estas canções, mas viveu-as.

Sobre o autor

João Santiago Correia

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