No mundo lusófono, começa a ficar caro fazer graçolas. No Brasil, um comediante foi condenado a oito anos de prisão por dizer piadas. Em Portugal, uma comediante está a ser processada com um pedido de indemnização de um milhão de euros por fazer um vídeo cómico.
No caso lusitano, há aspectos curiosos e estilísticos que podem não interessar ao leitor, mas que vou aqui dissecar, de qualquer forma. O dueto que se afirma vexado e insultado pelo vídeo feito por Joana Marques afirmou, em declarações públicas e nas que fez ao tribunal, uma coisa relativamente simples: nós não acreditamos em figuras de estilo. A dupla rejeita totalmente a possibilidade de a comediante ter usado metáforas, metonímias, hipérboles, ironias e oxímoros. Para os cantores, tudo o que aparece naquele vídeo deve ser entendido de forma absolutamente literal.
É aqui que entro eu, qual escanção da figuração estilística, com observações pertinentes. Primeiro, e de absoluta relevância, o nome do dueto: Anjos. Ora, literalmente, anjos são figuras celestiais, mensageiros de Deus. Os anjos não têm palavra própria, a sua fala é a palavra do Senhor. Por definição, os anjos nunca desafinam, porque Deus nunca se engana. É por isso que os anjos não entendem a diferença entre “assassinar uma canção” e “assassinar o escanção”. Para eles, é tudo homicídio.
Nas canções angelicais, encontramos também apenas e só literalidade. Os anjos não são dados à retórica. Dizem o que têm a dizer sem rodeios. Por exemplo, na canção “Perdoa”, cantam «Tu foste o meu mar, quis ser o teu sol». Obviamente, é uma canção dedicada a um mar onde agora os Anjos já não vão, daí o tempo verbal no passado. Suspiram talvez pelas praias de Odesa, agora interditas até a enviados de Deus. O segundo verso é mais revelador. «Quis ser o teu sol». Os anjos quiseram ser o sol desse saudoso mar. Suspeito que desejar ser um astro de radiação energética possa muito bem ser causador de ataques de acne.
Na canção “Anjo Selvagem”, uma referência óbvia a Satanás, o anjo que se rebela contra o poder divino – de que os anjos, recordo, são porta-vozes. Esta liturgia musical começa logo com o verso «Entraste na minha vida como um vulcão», portanto, numa forma de erupção – que se fosse cutânea, poderia ser acne. De seguida, confessam «Tu és o meu sonho, a minha tentação». São os enviados de Deus a admirar as tentações do Diabo. Não é novo, Jesus também foi tentado pelo Diabo, e recusou. Mas uns versos mais à frente, os anjos musicais renegam a sua natureza, e exclamam, «meu anjo selvagem, só a ti eu vou amar». É como se a porta-voz da Casa Branca declarasse amor eterno ao ayatollah Khamenei.
Noutra canção, “Nesta Noite Branca”, as angelicais vozes entoam os seguintes versos: «Sou um boneco de neve e tenho a certeza que vou derreter quando os teus lábios tocarem nos meus». Neste hino, os canoros divinais confessam que são afinal bonecos compostos de cristais de gelo, bonecos que derretem ao mínimo encosto labial. São entes frágeis, sem vida própria, esculpidos por mãos humanas, que duram apenas o tempo que durar a invernia. No fim da estação, serão apenas uma poça de água e uma cenoura, que em tempos serviu de nariz.
O acne, esse, talvez seja mesmo uma figura de estilo.
* O autor escreve de acordo com a antiga ortografia