A inutilidade das coisas

Escrito por Maria Afonso

Havia os domingos em que se encontravam. Os pais conversavam. Nunca se preocuparam em saber do que falavam. Os diálogos dos adultos eram fastidiosos para adolescentes com a vida inteira pela frente. Saíam de casa e as palavras brotavam como se tivessem estado a amadurecer numa penumbra e vissem, naquelas tardes de domingo, a estrada para a libertação. Assim as trocavam, rosadas e doces, como fruta sumarenta. Comiam as palavras e bebiam os sonhos que um dia, sabiam, teriam que ser reais.
Caminhavam sem destinos traçados, livres de preconceitos e de tudo o que ousasse impor barreiras à alma. Sabiam de cor as letras das canções em voga. E cantavam. Às vezes rapazes mais atrevidos, à saída do metro, enviavam-lhes piropos que não eram, para elas, um insulto. Riam muito e deliciavam-se com gelados junto aos bateaux-mouche. Sem se aperceberem tinham a torre Eiffel por diante e estendiam-se na verde languidez do Champ de Mars.
As tardes de domingo em Paris eram mágicas. Sentia-se no ar uma leveza maior. As ruas e avenidas cresciam dentro dos olhos. Um quase ritual guiava-as de novo até às margens do Sena. Ali se sentavam para que as águas fluíssem ritmadas pelas palavras. O tempo era sua pertença. Sabiam-no nas mãos tatuado.
Anos antes os pais levaram-na ao Porto. Só muito mais tarde percebera o verdadeiro fundamento dessa viagem. Não fora apenas a urgência do pai em lhe mostrar pela primeira vez o mar, que permaneceria o instante da cristalização da eternidade, com a voz ao longe da mãe a gritar-lhes – o mar leva as pessoas, não se aproximem. Nem o kilt que lhe compraram e que lhe assentava tão bem, nem a paragem junto à ponte levadiça, um espanto retesado nas mãos fechadas nos bolsos, serviriam de justificação.
Um amor desmedido e vivo no olhar do pai insistia ninguém poder dividir. Tudo seria descomplicado não fosse a polícia política e um regime repressivo. Mas a tenacidade de um pai ninguém pode bater. Uma decisão autoritária jamais imporia limites ao amor. E o salto era tão fácil de dar.
A mãe dava-lhe a mão nas ruas de Paris. O bulício de uma cidade cosmopolita enchia-lhe os olhos. Na retina morrerão com ela as vestes coloridas dos monges budistas que se movimentavam aos pares nas avenidas. Numa espécie de convocação a mão da mãe guiava-a até uma igreja. Dizia que se devia agradecer a Deus. Ajoelhava-se e falava com Deus.
Ela, criança para quem os mistérios da fé eram verdadeiramente um mistério, não sabia o que dizer a um Deus invisível e intocável. Sentava-se num banco e olhava à volta. Sentia o silêncio. Aquele silêncio estava imbuído de uma paz brutal e de uma perturbação fresca e viva que a ofuscava. Ainda o sente na pele, nos ossos, nos olhos, nos sentidos. Continua a envolvê-la como se as mãos de Deus se estendessem sobre ela.
Parecem tão distantes essas tardes de domingos adolescentes. As palavras ainda as deleitam como fruta madura. Os sonhos terão sido o mais análogo à realidade. Ou foram a devida realidade. Nunca devemos reclamar do que não conseguimos concretizar dos nossos sonhos. Era ontem e já tinham chegado à conclusão que tudo tem um tempo. Que nada acontece sem motivo. Foram sempre uma espécie de filósofas da própria existência. Só elas são capazes de entender. De arrancar o coração com as mãos e trocar de coração.
Os pais ainda devem estar a conversar. Mas algo lhes diz que as aguardam. As tardes de domingo, mesmo em Paris, não são eternas.

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Maria Afonso

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