A inutilidade das coisas

Escrito por Maria Afonso

Um bairro inteiro a demolir. Casas. Homens desmembrados como pedaços de blocos maciços de betão. Paredes de cores fortes a empalidecer. Quando cai uma casa é como se resvalasse um espelho duplo sob o rosto das palavras. Ninho. Lar. Cama. Café. Nos quadros que as paredes ostentavam oculta-se agora um retoque de céu. Um olhar de mar. Se os quisermos observar teremos que os procurar como se fossem livros de lombada oca. Aparentes obras anónimas que cortinas em organza de seda deixam transparecer. Ao fundo, encostadas a uma parede, as estantes roubadas de uma biblioteca. Quase não se dá por elas. Só as sombras sujas talham os seus limites.
Os blocos de betão rosa amontoam-se como ossadas de um cemitério que se abriu. Um dicionário de pintura abstracta suspenso nos andaimes de ferro olha-nos por dentro. Sente-se o vôo enlouquecido das gaivotas. Atiram-se descontroladas contra os molhes. Procuram na cabeça das mulheres o cheiro dos colares de peixe seco. As mulheres do mar costuram velas que pintam nos sonhos. Os homens seguram búzios. Temem fechar a porta ao sussurro das vagas.
Com o mar ali tão perto dir-se-ia que eram casas de férias. Vestígios de revistas quase desfeitas libertam palavras onde se pode pousar os cotovelos. Ao longe, um bote remado por um homem-pássaro alerta para a veracidade dos mistérios que prende o azul. O casaco impermeável, amarelo forte, continua pendurado no bengaleiro improvisado. Dois capacetes disputam, inertes, a sua utilidade. Lado a lado aguardam as horas. O tempo foi danificando as casas e abrindo chagas nas mãos dos homens.
A dúvida desfaz-se no olhar triste do cão que nada prevê. Tarda-lhe o silêncio na derradeira vigilância das estações do ano. Não consta que alguma vez tenha havido férias no bairro pronto a demolir. Os habitantes foram permitindo fotografias. Películas a preto e branco que terminaram expostas. Com elas o entendimento possível de um mundo acima do norte. Os que viveram não conseguiram disfarçar os vincos na pele. Pressente-se brilho e uma apressada elegância na atitude de quem se olha, quase desnudado, num obturador.
Fragmentos de alvenaria alinhados, encaixados, encaixilhados. Um som de hip-hop a esvaziar palavras duras. Como se fossem cuspidas. E os gestos arrebatados de quem sabe a que assistem as mãos. Transeuntes esporádicos não resistem a olhar de perto. Experimentam a insensatez de serem casas. Reinventam monólogos ciciados e vêem-se a entabular estranhos diálogos como peixes fora de água. Rareia o ar. Balbuciam-se as palavras. O lugar deixou de existir.
Sobeja uma escadaria de madeira gasta. É por ela que se alcança a janela com os olhos azul do mar. Semicerrando as pálpebras vislumbraremos o homem majestoso, água quase, no topo da sala. Somos a casa. O bairro inteiro. O betão e as cores de todas as paredes. Erguemos uma praça ampla, sem andaimes. Espalhamos as folhas do dicionário de pintura abstracta. Embrulhamos nas cortinas o vento e deixamos de esconder as mãos.
Agora, o que se observa, já distante, está contaminado. É uma lâmina emprestada ao tempo. Uma ilusão perversa que hesita permanecer como um fardo puído. Há, porém, um barco misterioso, uma rota indecifrável à beira das palavras. O que prevalece é irremediável e fiel. Uma dobra quase volátil, cativa e inesperada. Uma sombra que sobra para ser discreta. Se não fosse o golpe na mão e o sangue que persiste até à cicatriz.

* A autora escreve de acordo com a antiga ortografia

Sobre o autor

Maria Afonso

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