Arquivo

Os Dias Vastos

Opinião – Ovo de Colombo

E Agora? Lembra-me de Joaquim Pinto acaba de ganhar o Prémio Especial do Júri e outros dois galardões no Festival de Locarno. É um auto-retrato de um homem que vive há mais de duas décadas com o VIH. A sua memória pessoal confunde-se com a história do cinema português pós-revolução. Aproveitando este pretexto, lembremos a sua segunda longa-metragem, Onde Bate o Sol (1989).

Este filme e o anterior, Uma Pedra no Bolso (1988), partem do desenraizamento de uma personagem. Em Uma Pedra no Bolso, um miúdo é enviado para casa da tia na Atalaia, Lourinhã. Aqui, Nuno (António Pedro Figueiredo) visita a irmã a Vouzela, Viseu. Ambos chegam a lugares desconhecidos que vão descobrindo à medida que lidam com dilemas e encontram caminhos para percorrer. A diferença está sobretudo na paisagem. Vouzela é no interior, um sítio sem mar, onde a vastidão do céu é desvendada pela planície árida — por isso surgem no princípio e no fim da obra, respectivamente.

Onde Bate o Sol é um objecto singular, depurado e intrincado em simultâneo. Desde o início que cruza perspectivas, encadeia divagações, nomeadamente através do uso da voz off. É difícil identificar um protagonista neste mundo de diversas histórias e classes. Num momento, o foco muda de Nuno, que joga à bola, para uma criada que se lembra da bebedeira dele no casamento da irmã e de ter limpo o que ele partiu. O olhar do filme é assim descentrado e fragmentado. Joaquim Pinto trabalhou desde o final da década de 1970 como técnico de som, o que faz com que este elemento seja fundamental nas suas obras. Em Onde Bate o Sol, as dobragens tornam-se ecos da temática. Laura Morante (Laura, irmã de Nuno) foi dobrada por Maria de Medeiros, Joaquim Vicente (Artur, marido de Laura) por Luís Miguel Cintra, e Marcello Urgeghe (Alberto, ajudante) por António Ricardo. É como se falassem com uma voz herdada à qual estão acorrentados sem terem voz própria.

Tudo acontece num tempo de Verão em que as experiências e os sentimentos ganham intensidade. Sobressaem tensões acumuladas e vividas em Portugal, entre o atavismo e o progresso, depois das transformações da revolução de Abril terem sido estancadas. A professora conservadora (Maria Ortega), fiel a um cristianismo aburguesado e admiradora do colonialista Alexandre de Serpa Pinto, mostra bem como o presente é ensombrado pelo passado. O pudor na representação do adultério feminino e da homossexualidade masculina não é um falso pudor, mas retrata e disseca o constrangimento que governa estas vidas. Daí que nestes dias também se vislumbre a liberdade que podia reinar, fazendo lembrar o verso escrito por Sophia de Mello Breyner Andresen: “Os dias de verão vastos como um reino”.

Sérgio Dias Branco*

* Coordenador de Estudos Fílmicos e da Imagem (Mestrado em Estudos Artísticos) na Universidade de Coimbra

**O autor escreve de acordo com a antiga ortografia

Sobre o autor

Leave a Reply