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Abraço ao Vento

Opinião

O DVD data do ano passado. É uma compilação de seis curtas-metragens de animação portuguesas de nome “6 Frutos do Outono”. As duas obras mais recentes, e mais destacadas na edição, são “Os Olhos do Farol” (2010), realizado por Pedro Serrazina, e “Viagem a Cabo Verde” (2010), de José Miguel Ribeiro. Todos os filmes incluídos merecem atenção e dedicação, confirmando a vitalidade artística do cinema animado português. Destaco aqui o filme mais curto: “Abraço do Vento” (2004), também realizado por José Miguel Ribeiro, autor do premiado “A Suspeita” (1999).

Esta animação com dois minutos e meio parte de uma peça musical de Carlos Paredes, “Canto do Trabalho”, para mostrar o movimento único do mundo, humano, natural e construído. A obra nasceu de uma encomenda da associação Movimentos Perpétuos para que o cineasta fizesse um filme a partir da música do guitarrista de Coimbra. “Canto do Trabalho” é mais uma composição pulsante de Paredes que integra a tensão da procura e a dinâmica da vida, como se as notas fossem alimentadas pela respiração humana. É uma viagem que começa com o repetir insistente de notas, seguido do percorrer das cordas metálicas. Esta busca cede lugar ao dedilhar, primeiro lento, depois rápido, com constantes mudanças de velocidade. São notas à procura umas das outras, arranjando-se de modo a conviverem e a trabalharem em conjunto. O que guiou o realizador parece ter sido apenas a escuta atenta e imaginativa deste canto sem voz. Como o próprio explica: «A terra (vermelha da Estremadura e castanha do Alentejo), as folhas, o metal dos parafusos, a cerâmica dos pratos, o papel dos envelopes e os acrílicos são a matéria-prima deste trabalho». Com estes elementos, a animação de volumes define dois lugares com duas terras, duas árvores, e dois tipos de folha. Junto à terra, o barro trabalhado faz a transição entre solo e sub-solo, exterior e interior. Os troncos das árvores são feitos de ferro com raízes de camadas de folhas e tempos. O vento sopra as folhas dum ponto para outro. É uma paisagem portuguesa, onde dado e produzido, cores e sons, coexistem. Por um momento, tudo pode parecer invertido como num dos planos do filme. Mas é apenas porque o nosso olhar não abarca os ciclos e as ligações. Tem de ser ajustado. Na secção dedilhada a várias velocidades, a transformação da matéria através do trabalho humano ganha um sentido poético vertiginoso. As duas folhas tornam-se duas figuras e a animação passa a ter a pintura como base. Dão as mãos, correm, e uma cidade cresce à sua volta através dos largos gestos feitos traços dos desenhos pintados. Do seu movimento, que atravessa o quotidiano das ruas e das casas, brotam outros ventos e outros abraços.

Por: Sérgio Dias Branco*

* Coordenador de Estudos Fílmicos e da Imagem (Mestrado em Estudos Artísticos) na Universidade de Coimbra. Inicia nesta edição uma colaboração regular com O INTERIOR

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