Quando a Câmara da Guarda emitia dinheiro

Escrito por Francisco Manso

«O dinheiro é tão bonito,
Tão bonito, o maganão!
Tem tanta Graça o maldito
Tem tanto chiste o ladrão!»
(João de Deus, in “Campo de Flores”)

Cédulas fiduciárias em Portugal

As cédulas fiduciárias ou, vulgarmente, cédulas, surgiram em finais da década de 1910, quando Portugal atravessava uma grave crise económica e a moeda se desvalorizou de tal maneira que o metal de que era feita se torna mais valioso do que o valor do seu rosto.
Face à situação, o Governo, de forma a assegurar as necessidades da população e a dinamização da economia local, autorizou a Casa da Moeda a emitir cédulas que se destinavam a substituir as moedas de 5, 10 e 20 centavos. Era uma moeda de troca para as transações diárias, de recurso, impressa em papel, muitas vezes de má qualidade, também designada de “dinheiro de emergência” ou “de recurso”.

Figura 1 Manso

Figura 1 Cédula emitida pela Câmara da Guarda. Col. Ana Manso

Os primeiros passos da República

Os tempos que se seguiram à implantação da República, entre 1910 e 1920, foram de grande instabilidade governativa, a que juntaram as consequências nefastas do envolvimento de Portugal na primeira Guerra Mundial (1914-18) e a gripe pneumónica (1918-1919). Havia um grave desequilíbrio das contas públicas, uma inflação altíssima, uma das maiores da Europa, e uma grave escassez de bens, sem esquecer que em 22 de maio de 1911 a unidade monetária, o real, foi substituída pelo escudo.
O valor do metal das moedas era de tal forma elevado que compensava derretê-las para outros fins. Ou seja, as moedas acabaram por desaparecer do mercado.
Num primeiro passo, numa medida que se verificou ser insuficiente, o Banco de Portugal emitiu moedas em ligas e metais pobres, como bronze, cobre e ferro, de forma a terem um valor nominal superior ao intrínseco. Depois, em 1917, o Governo, através da Casa da Moeda, passou a emitir cédulas e o mesmo fez a Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, pela qual seriam «também emitidas, em séries, cédulas de $5 com curso legal por todo o país, fornecidas em troca do equivalente em moeda corrente».
Mas, dada a emergência da situação, o Governo acabou por autorizar as câmaras municipais a emitir cédulas dentro da área do respetivo concelho, a que seguiram Misericórdias, hospitais, e até alguns estabelecimentos comerciais, com circulação entre a sua clientela.

Figura 2 Manso

Figura 2 Cédula emitida pela Câmara de Manteigas. Col. Ana Manso

O fim das cédulas

As emissões de cédulas, tirando as da Casa da Moeda e da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, teriam sido feitas ilegalmente, mas toleradas dada a sua utilidade pública e circulação restrita.
Só a partir de 1924 começou a abrandar a depreciação do valor da moeda e começou progressivamente o fim da utilização das cédulas. De acordo com Oliveira Marques, teria sido o egitaniense Álvaro de Castro que conseguiu finalmente deter a marcha do escudo. «(…) A legislação de 1924 reformou também a moeda metálica, aumentando o teor da liga e reduzindo o valor real das moedas. Aos poucos, foi sendo possível acabar com as cédulas de papel …»
Só para dar uma ideia daqueles tempos, Álvaro de Castro, nascido na Guarda em 1878, foi por duas vezes presidente do ministério, ou seja primeiro-ministro, tendo sucedido, na segunda vez, a Ginestal Machado, natural de Almeida (1874), portanto, também ele do distrito da Guarda.

As cédulas no distrito da Guarda

Não era só uma crise económica, era também uma convulsão social e religiosa que o país e a região viviam, e daí que não surpreenda que tenham sido bastantes as câmaras do distrito que emitiram cédulas. As câmaras emissoras, e das quais tenho conhecimento, foram Almeida, Figueira de Castelo Rodrigo, Guarda, Manteigas, Meda, Pinhel, Sabugal e Vila Nova de Foz Côa. Apesar de tudo, não encontrei qualquer referência a outras entidades que o tenham feito.
As cédulas eram geralmente de aspeto rudimentar, sem grande preocupação estética, mas que com o passar dos anos, de manuscritas passaram a impressas e a ter melhor apresentação gráfica. Passaram a representar edifícios, monumentos ou paisagens locais, constituindo um bom meio de propaganda turística e regional.
Ao facilitar as transações locais e corresponderem às necessidades concretas de cada concelho, são uma parte importante da história da economia regional e da relação entre a sua população e as suas instituições.
Se presentemente o fabrico de notas é da competência da “Valora”, detida em 100% pelo Banco de Portugal, com papel especial vindo de Espanha, na altura essa função competia, em grande parte, à prestigiada Casa “Véritas”. Feitas em papel bem modesto, eram assinadas pelo presidente da Câmara ou pelo presidente da Comissão Executiva da Câmara, conforme os casos. Na Guarda, uma dessas emissões foi assinada pelo tesoureiro, Germano de Oliveira, que foi proprietário da Quinta da Malmedra e de algumas casas encostadas à Torre dos Ferreiros, onde agora se encontra o elevador, e foram alvo de um dos maiores incêndios de que há memória na cidade. Está sepultado no cemitério da Guarda em belíssimo jazigo.

* Investigador da história local e regional

Sobre o autor

Francisco Manso

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