Observatório de Ornitorrincos de Nuno Amaral Jerónimo: Desencanitamentos

No fim de semana, milhares de pessoas, aproveitando a coincidência destes aniversários, juntaram-se em Lisboa para exigir a libertação de presos.

No dia em que escrevo, terça-feira, coincide o segundo aniversário do massacre de civis israelitas cometido pelo Hamas – para quem já não se lembra, teve decapitações, violações e celebrações – com o septuagésimo aniversário do senhor do Kremlin, filho de Putina.
No fim de semana, milhares de pessoas, aproveitando a coincidência destes aniversários, juntaram-se em Lisboa para exigir a libertação de presos. Dos reféns capturados e mantidos em cativeiro pelo Hamas – os que ainda estiverem vivos – durante dois anos? Não, esses são judeus torturados, não interessam nada. Das crianças ucranianas raptadas e enviadas para campos de reeducação durante os últimos três anos e meio pelo regime do ditador aniversariante? Não, essas são crianças russificadas, também interessam pouco. Dos jornalistas e professores – classes profissionais sempre prontas para protestar e apoiar protestos – presos em calabouços bielorrussos pelo amiguinho Lukashenka, por delito de opinião, alguns deles há mais de cinco anos? Também não, esses são reaccionários anti-comunistas, e ninguém sabe sequer onde fica Belarus.
O que se pedia era que se libertasse uns activistas que estavam presos há dois dias. Para os milhares de manifestantes de fim-de-semana, tão anti-racistas, tão anti-colonialistas, tão anti-capitalistas, dois dias de burguesinhos ocidentais são muito, mas muito mais valiosos do que anos e anos de judeus e malta de leste, ou de sudaneses, congoleses, birmaneses e outros, que bem podem ser presos, torturados e chacinados que nunca vão ter nenhum maluco a auto-electrocutar-se só para lhes defender “a causa”.
Não deve ser por acaso que dreams e merdas se escrevem exactamente com as mesmas letras.

* O autor escreve de acordo com a antiga ortografia

Sobre o autor

Nuno Amaral Jerónimo

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