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“Leninha”, a mulher que percorre as aldeias de Trancoso para fazer companhia a idosos

Para combater a solidão dos idosos do concelho de Trancoso, Helena Saraiva criou a “Rugas de Sorrisos”, uma associação sem fins lucrativos que conta com o apoio da Junta de Freguesia, da Misericórdia local e da Refood.

A Aldeia de Santo Inácio fica a menos de três quilómetros de Trancoso. Ali vive José Aguiar, numa pequena moradia sem água nem luz, e é dos poucos que insiste em ficar. Por estes dias chegaram emigrantes, vindos da Suíça, mas daqui a oito dias a aldeia volta a esvaziar-se de pessoas. Com 80 anos, nunca casou nem teve filhos e, de há um ano para cá, o que lhe vale é a companhia de Helena Saraiva, que o visita todas as semanas.

«É o melhor que tenho, confiar nela. Devo-lhe tudo», diz, emocionado. De sorriso fácil e com um sentido de humor contagiante, José Aguiar não poupa elogios à “Leninha”, como é conhecida pelos seus “velhotes”: «É boazinha, é amiga de fazer bem às pessoas e estima quem precisa. Se aqui estiver morto na cama ninguém bate à porta, só ela», declara o morador. Mas “ganhar” a confiança do senhor Zé não foi tarefa fácil e Helena Saraiva teve que superar muitas barreiras: «Quando a vi não dava nada por ela, com a roupita de trabalho, ao pé dos guardas. Quase nem sabia falar», confidencia o octogenário, recordando o dia em que a voluntária lhe bateu à porta acompanhada pela GNR. «Fiz um requerimento que me permitiu andar com uma patrulha nas visitas domiciliárias e isso possibilitou que as pessoas me recebessem de outra forma», acrescenta a presidente da “Rugas de Sorrisos”.

«Nesse dia pedi-lhe que me fosse buscar lenha e ela logo me atendeu», revela José Aguiar, logo interrompido por Helena Saraiva para dizer, entre risos, que «ele pensava que eu não aparecia cá mais». Mas o senhor Zé enganou-se e agora, de manhã à noite, «não espero por ninguém a não ser por ela». Com uma vida complicada e a viver em condições miseráveis, foi através da associação que José Aguiar, que sabe ler e escrever, fez o cartão de cidadão e começou a receber a reforma. Ainda que uma deficiência no pé lhe dificulte o andar, o morador na Aldeia de Santo Inácio não para e, além da companhia da “Leninha”, não dispensa cuidar diariamente da sua horta. Terminada a visita, Helena Saraiva despede-se alertando José Aguiar para comer a sopa e o resto da comida, acondicionada em “tupperwares”, que deixou em cima da mesa da cozinha: «Não tem frigorífico e com o calor a comida não aguenta muito tempo», refere a benemérita.

Felisbela e Maria Luísa renasceram

“Leninha” segue para Castaíde onde vive a D. Felisbela, com 74 anos, que a recebe com um abraço caloroso. A anfitriã não regateia elogios à “Rugas de Sorrisos” e confessa que voltou a renascer: «Faz-me muito bem e gostava que continuasse», confessa. Com cinco filhas formadas e uma delas a viver em Trancoso, a D. Felisbela sempre esteve habituada a conviver com pessoas e quando teve que abandonar o que fazia sentiu-se “vazia”: «Os meus pais queriam que estudasse, mas eu quis aprender a costurar e a fazer bordados. Ensinei muita gente, cheguei a ter turmas de 30 e 40 pessoas», recorda, acrescentando que abriu ainda um supermercado em Trancoso.

É uma comunicadora nata, a quem a “Rugas de Sorrisos” deu novamente a possibilidade de ser «criança» e fazer atividades de que gosta, como o teatro. «Esta é a senhora que refilava comigo quando fizemos a coreografia», interrompe Helena Saraiva, afirmando, em tom de brincadeira, que, «para vergonha» sua, houve alguns ensaios em que teve que «tomar Voltaren porque não conseguia mexer o braço e eles continuavam». É que «eles adaptam-se mais facilmente a algo que eu lhes peça do que eu», garante Helena Saraiva, que tentou aprender com a D. Felisbela a cortar uma saia, mas sem sucesso. «Eu escrevi ponto por ponto num caderno e ainda hoje não sei fazê-lo», lamenta.

Na mesma freguesia mora Maria Luísa. Tem três filhas, mas vivem todas em Viseu e a “Leninha” foi um anjo que caiu do céu. «A “Rugas de Sorrisos” tem muito valor porque estava aqui sozinha. Veio dar-me muita vida», declara, dizendo que é pena que a “Leninha” «não consiga juntar-nos mais vezes» por causa do transporte. «O que ela precisa é de alguém que a ajude», apela Maria Luísa, que vive numa zona com algumas casas, mas quase todas vazias. «Se não fosse a Lena, as minhas filhas não me queriam cá sozinha», acrescenta a sexagenária. A filha Rosa Castanheira, de 55 anos, confirma: «Está aqui por opção dela. Queríamos que estivesse ao pé de nós, mas não quer deixar a sua casa», refere, garantindo que agora que está no projeto é mais uma força para ficar. «No Inverno ela até vai, mas no verão não quer. Porquê? Para estar perto da Lena. Às vezes ficamos com um bocadinho de ciúmes, mas sabemos que é bom para ela», acrescenta Rosa Castanheira, constatando que a mãe está «mais satisfeita e feliz».

E para Helena não há melhor recompensa do que ver os seus “velhotes” sorrir: «Como se pode desistir de pessoas assim, que nos educam?», interroga a presidente da “Rugas de Sorrisos”, para quem a melhor retribuição é ver «que os deixei bem, que ficaram felizes, que fiz alguma diferença no seu dia-a-dia».

No inverno, Maria Augusta passa dias sem ver ninguém

A próxima paragem é Sintrão, onde vive Maria Augusta, de 85 anos. Mal se chega ao portão da casa somos recebidos por outra fiel companheira – a cadela Fofinha. «Agora temos esta menina que se ocupa de nós, que é uma queridinha connosco», declara a dona, esclarecendo que «a “Leninha” vem de longe, também faz um sacrifício para nos aturar, mas é muito gentil». Com dois filhos emigrados em França, Maria Augusta garante que os dias de Verão passam-se melhor do que os de Inverno: «Nessa altura estou aqui dias inteiros sem ver ninguém. Vale-me a companhia da televisão e quando vem a “Leninha”», conta. Para o lar não quer ir, mas o futuro é incerto: «Quero que me tragam a comidinha a casa quando eu não puder, mas para lá não queria ir», insiste a moradora. «A maior parte destas pessoas não quer ir para o lar. Nem é pelo lar em si, porque sabem que vão ter acompanhamento e carinho, mas há regras que não são as delas. O quarto, por muito bonito que seja, não é o deles», justifica Helena Saraiva.

Rugas de Sorrisos apoia 13 idosos

Se é para ter rugas que seja de tanto rir, é esse o lema e o ponto de partida para Helena Saraiva criar um projeto que, em outubro de 2017, viria a tornar-se numa associação sem fins lucrativos. «Sempre gostei muito de trabalhar com idosos e crianças. Ou me dedicava a uns ou aos outros», confessa.

Criada pelos avós, Helena Saraiva tem “a seu cargo” 13 idosos – de Trancoso, Castaíde, Aldeia de Santo Inácio, Sintrão e Rio de Moinhos – mas inicialmente acompanhava mais de 30. «O serviço foi gratuito durante um ano», recorda a mentora do projeto, lembrando que na altura a adesão superou expectativas. «Houve mais inscrições, nós é que não tínhamos capacidade de resposta», confirma Helena Saraiva, adiantando que houve desistências assim que o serviço começou a ser cobrado. «Sempre pensámos que ao constituir a associação as coisas melhorassem, que tivéssemos mais apoios e conseguíssemos fazer o que ainda não estava feito, mas não aconteceu», lamenta Helena Saraiva, segundo a qual as portas «ainda estão um bocadinho fechadas» e há pessoas que «não entendem a finalidade» da “Rugas de Sorrisos”. «Não faço sombra, eu só quero que quem ainda não precisa de um lar, que ainda tem autonomia e pode estar sozinho, sorria. Eu não faço milagres, eu dou-lhes tempo», sublinha.

Falta de apoios coloca associação em risco

Por agora, a “Rugas de Sorrisos” “sobrevive” da mensalidade paga pelos idosos e conta com o apoio da Junta de Freguesia, da paróquia de Trancoso e da Refood.

«A nossa maior falha é a nível financeiro», queixa-se Helena Saraiva, que durante cinco meses trabalhou gratuitamente e teme que até ao final do ano não estejam criadas as condições para continuar: «Isso deixa-me de coração apertado porque não sei muito bem como dizer aos nossos utentes que até dezembro estamos garantidos, mas depois não sabemos», lamenta a responsável, cujo objetivo é «melhorar o serviço» com recursos humanos, material e transporte. Normalmente Helena Saraiva anda com o seu carro e, «quando é preciso», tem o apoio do padre Joaquim Duarte, que disponibiliza a carrinha da paróquia. «Estamos sempre dispostos a ajudar, seja com a carrinha ou na divulgação das atividades. Tudo aquilo que se puder fazer pela melhoria da qualidade de vida das pessoas vamos fazendo todos», assume o pároco, para quem seria «interessante e necessário conjugar mais esforços». E, na sua opinião, a ação da “Rugas de Sorrisos” podia ser «mais eficaz» se tivesse mais apoios.

Também o presidente da Junta de Freguesia de Trancoso apoia o projeto: «Quando a Helena veio ter comigo fizemos-lhe um contrato de trabalho durante um ano. Uma das realidades que ela nos contou era que nem toda a gente lhe abria a porta de casa e então achámos que se levasse o selo da Junta seria mais fácil. Esse foi o primeiro apoio direto», lembra André Pinto. Neste momento, a Junta dá um apoio, em forma de protocolo, no valor de 1.500 euros anuais e todas as despesas associadas a feiras e eventos também são comparticipadas. Ainda assim, o autarca defende que só com a ajuda de todos, incluindo pessoas, empresas, associações e entidades públicas, o projeto tem pernas para andar.

Guarda é o distrito com mais idosos sozinhos

A última operação “Censos Sénior” não deixa margem para dúvidas: a Guarda é o distrito com mais idosos a viverem sozinhos e isolados. Levado a cabo pela GNR em 2017, o levantamento revela que havia mais mulheres (2.900) que homens (1.032) nessa situação. Desses casos, 2.486 mulheres viviam sozinhas e 227 estavam isoladas. Foram ainda sinalizadas 174 idosas a viverem sozinhas e isoladas. Já em relação aos homens foram identificados 711 a viverem sozinhos, 225 isolados e 92 nas duas condições. Nesta operação, a GNR da Guarda localizou ainda 17 pessoas que não se enquadravam nas anteriores, mas estavam em situação de vulnerabilidade fruto de limitações físicas e/ou psicológicas.

Sara Guterres A mensalidade é de 38 euros para quem está sozinho e de 48 para quem está acompanhado, podendo variar consoante as horas

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