O senhor capitão

Escrito por Fidélia Pissarra

O senhor capitão regressou doente da guerra. Sem sinal de ferimentos de bala, ou de florete, de que, dizem, fora exímio praticante. As cicatrizes não se viam, nem ninguém as queria ver! Fechou-se, o senhor capitão, no quarto dos fundos e só esposa e criadas podiam rodar a chave que sobressaía da porta. A esposa para garantir que os dejectos do senhor capitão tinham sido devidamente removidos pelas criadas e tudo estava bem. As criadas, com a ajuda do soldado que todos os dias vinha trazer os mantimentos, para o aperaltar.
O senhor capitão divertia-se a chamar nomes, com apelidos de flor, às criadas e, à falta de outros convivas, matava o tempo a pregar-lhes partidas ou a pedir-lhes que as pregassem, por ele. Era vulgar, dar com ele esquecido de vestir as calças, com o soalho a pingar urina para o quarto das visitas, ou pior. Às vezes, mandava entregar encomendas, surpresas pouco cheirosas e agradáveis como vísceras de galos, coelhos e peixes que pedia que lhe trouxessem da cozinha, a amigos e conhecidos. Mas, entre baldes de água, sabão e escova, tudo se ia resolvendo com muita risada à mistura. Não fosse ele o herói de guerra, ambicionado por qualquer “família de bem”, e alguém lhe havia de ter enfiado o tal colete-de-forças do manicómio. Assim, entre “valha-nos deus” e “minhas nossas senhoras”, lá se iam agitando os dias com a maluqueira do senhor capitão! Provocada pelos gases, afiançava o médico a cada visita. Provocada pela lama, fome e terror, acreditava a jovem viúva de marido vivo e mãe de vasta prole.
Um dia, o secreto desejo de toda a família, criadas e imediato incluídos, chegou: fardado a rigor e com honras militares, sepultou-se o senhor capitão no talhão dos heróis da grande guerra, a primeira. No quarto dos fundos passou a dormir apenas o cão e, depois, nem ele. Morreu pouco tempo depois do dono e foi levado numa saca de serapilheira pelo novo soldado. As criadas ficaram sisudas e a casa sorumbática. Para atenuar o peso da normalidade, a jovem viúva aprendeu a limpar o pó para que as criadas pudessem passear as crianças. Mas, na praça, as pessoas murmuravam, entre si, que eram os filhos do senhor capitão e passaram a ficar todos em casa. Para que ninguém voltasse a murmurar-lhes quem eram, nem à escola foram. Os professores vinham a casa ensiná-los. Ensinar-lhes que o homem maluco do quarto dos fundos fora, afinal, herói de guerra. Dera o juízo e a vida pela pátria!
Nunca, naquela família, se voltou a falar do marido, do pai, do quarto dos fundos, da guerra. De nenhuma guerra. Veio a revolução e nenhum falou dela, nem dos militares que a fizeram, nem dos partidos que nasceram. Podia, da praça, chegar o maior burburinho que, naquela casa, nem o gato se movia no peitoril da janela. A velha viúva continuou, sempre impávida, a separar as cartas, sobre a camilha, em infinita paciência na companhia da televisão, a preto e banco, que em silêncio enchia o fundo da sala. A lembrar que, na guerra, nas batalhas lá de França, não ficou só o juízo, a sua vida e do seu capitão. Na guerra, como em todas as guerras, ficou, acima de tudo, a dignidade humana que, passados 100 anos, continuamos na esperança de ver resgatada.

Sobre o autor

Fidélia Pissarra

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