Cultura

Quem teria sido Franz sem Kafka?

Escrito por Luís Martins

Será que podemos acreditar numa existência pura e autêntica? Será que nós, comuns mortais, chegamos a compreender o absurdo da vida sem que isso condicione o esboço do nosso sorriso? E, considerando essa possibilidade, poderá crescer-se numa atmosfera oprimida e, ainda assim, ter a ânsia de uma “janela”? Não estou dentro da mente de Franz Kafka, mas acredito que em todos os momentos ele buscou essa janela e foi numa das últimas páginas de “O Processo” que me apercebi disso: «O seu olhar caiu sobre o último andar da casa que ficava contígua à pedreira. Como uma luz subitamente acesa, os batentes de uma janela abriram-se; ao longe, no alto, uma figura humana frágil e indecisa debruçou-se de súbito para diante e estendeu os braços ainda mais longe. Quem era? Um amigo? Um ser bondoso? Um ser compadecido? Alguém que queria ajudar? Era alguém solitário? Eram todos? Havia ainda algum socorro? Havia objecções esquecidas? Claro que havia. Bem pode a lógica ser inabalável mas não resiste a alguém que quer viver».
Várias são as análises sobre o que o levou a produzir obras tão insuportavelmente absurdas como “O Processo”, “O Castelo” e “América”, mas o que é certo é que muita da escrita de Kafka foi desenhada fora de horas. Muita da sua sensibilidade sofreu a martelada das leis enigmáticas do pai. Muito do seu corpo se envergonha. Muito do seu isolamento e da parede de vidro que o cerca oculta a ânsia de companhia. Mas também muito disto pode sofrer uma metamorfose se olharmos para os diferentes ângulos da sua vida. Por isso, há factos que não devemos descartar. A mãe e o pai vêm de mundos diametralmente opostos e nas palavras que Franz escreve em “Carta ao Pai” percebemos o impacto pesado que Hermann Kafka produzira no filho: «Às vezes, imagino o mapa do mundo todo desdobrado e tu estendido ao comprido sobre ele. E afigura-se-me então que só me interessariam para viver ou as zonas que tu não cobrisses ou as que não estivessem ao teu alcance».
Durante uma semana tentei compreendê-lo. Nessa semana errei. Depois tentei um mês. E voltei a fracassar. Kafka exige tempo. Kafka pede releituras e, nessa persistência, tive de me render à minha própria desgraça. Uma vez aí, compreendi que o ser humano pode: sofrer a transformação de um insecto; causar o desaparecimento de um o castelo só por ousar tocar-lhe; ou, ainda, calcorrear a rua sinistra da Justiça para se dar conta que estar vivo já é por si só uma condenação. E então, onde fica a alegria? Kafka saberia rir? Teria o dom de encontrar o cósmico e o cómico da sua desgraça? Como seria adormecer e acordar naquele corpo? A sua escrita não dá respostas e pelo peso das suas frases percebemos que o autor não deveria ser muito dado a dietas. Atrevo-me a dizer que não há balança nem fita métrica que suporte um pensamento kafkiano. Tratam-se de construções capazes de desafiar o organismo vivo mais pesado do mundo, mas, mesmo afundado nessa cama melancólica, Kafka procurava um amigo, uma “janela” para escapar da figura paterna. Pelo menos, assim o fazia crer nesta pequena passagem do seu diário: «As pessoas estão ligadas umas às outras por meio de cordas, e já é mau quando, à volta de uma, as cordas afrouxam e ela desce um bocado mais fundo que as outras no espaço vazio, e é horrível se rompem à volta de alguém e, então, ela cai. Por isso, se deve confiar nos outros».
E, já agora, uma curiosidade, no dia 27 de maio de 1914 (o ano em que escreve “O Processo”), Kafka anotou no seu diário: «Acho a letra K. ofensiva, quase repelente, e no entanto uso-a; é mesmo uma característica minha».

Melanie Alves*

*A autora escreve de acordo com a antiga ortografia
**Pode visitar: www.aosomdapele.wordpress.com

Sobre o autor

Luís Martins

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