Ventoso

1. A cultura oficial tem pouco ou nada a ver com a verdadeira actividade do espírito. Aquela que não busca o aplauso imediato, nem a entronização senatorial, nem a troca de favores, nem os ofícios de comissários da cultura, ocupados em promover abencerragens de museu e satisfazer quem lhes paga. A amplitude e a generosidade da autêntica criação artística não se compadecem com expedientes veniais. O que não significa que prescindam deles. Bem pelo contrário. Existe uma confluência formal que serve uns e outros. Rodas que se tocam na mesma engrenagem, que empurram um labor comum, mas que não se relacionam para além da necessidade imediata. A verdadeira arte existe para corromper. Neste domínio, tornar-se corruptível é uma contradição nos termos. Todavia, os agentes corruptores, chamemos-lhe assim, raramente aparecem com a notinha na mão, o subsidiozinho aprovado, a referenciazinha à obrazinha no pasquinzinho, a promessazinha do lugarzinho xisbicodabota. A coisa faz-se pela visibilidade de empréstimo, o pequeno poder provinciano, o círculo territorial que ignora, entre dois arrotos e três palmadinhas nas costas, o que está à volta e realmente mexe. Note-se que, quando falo em círculo, refiro-me a reunião de interesses convergentes. Não a movimentos artísticos com forte cumplicidade pessoal e estética. Onde o silêncio é a norma e o compromisso a excepção útil.
2. A linguagem dos militantes de partidos políticos e respectivos apóstolos ideológicos, caracterizada pela visão a preto e branco, e a linguagem das seitas religiosas são, na sua natureza, semelhantes. Refiro-me ao papaguear acrítico de conteúdos de propaganda, abdicando-se de qualquer distância reflexiva. E, pior ainda, onde a ironia desapareceu, levando com ela a leveza e a agilidade do pensamento. Como se não existissem três milénios de filosofia e outros tantos de literatura!…
3. Os nossos filtros de representatividade social têm como base a notoriedade postiça. A importância de papelão. O chegar à frente para a fotografia. O embuste. O “olha para mim que sou importante”. A petulância encartada. O sussurro paroquial. O empertigar titubeante do falo. O arroto discreto. No centro, faz-se notar o provinciano, que escancara o seu provincianismo na proporção inversa do esforço em o esconder. E aparece, na sua glória, o licitador da influência, do pedestal, do tráfico com a morte e a glória. O licitador não pára. No seu vastíssimo entendimento, a morfologia e a sintaxe são uma e só coisa. Pois estar em relação é o mesmo que integrar uma categoria. O licitador é o torrencial e compulsivo taxinomista do espaço mediático. O seu conhecimento abrange um pouco de tudo em geral e nada de nada em particular. O problema é que o licitador não consegue suster a sua diarreia informativa. O licitador está condenado a ser o sampler de si próprio. Como não lhe sobeja o talento, a imaginação, a agilidade, o despojamento, é incapaz de rupturas. Sabe que só existe porque é visto. É o nosso polícia conceptual, guarda nocturno do comércio subtil. É o vigilante do império da imagem e da vacuidade, O criado realmente pago pelos pobres para se aproximarem dos ricos, mas que se julga pago pelos ricos para se tornarem invisíveis aos pobres. É o mutante que alimenta a agiotagem essencial que nos tange e nos envergonha. Ali, ao virar da esquina.
4. O ofício do poeta não inclui a prova sazonal, em letra de forma, mas a desmesura do resultado, o vigor da errância. «É essa a sua prova de vida, ou o que isso seja», dirão os que não desconhecem a maturação recatada do poema. Mas há ainda outra razão. Que se poderia nomear, à falta de melhor o “amparo do fogo”. Porquê o fogo? Mais um recurso de estilo? Mais um ingrediente de um composto inócuo? A razão é simples: deve-se lidar com ele usando de toda a parcimónia. O verdadeiro perigo está em julgar que o dominamos, que lhe adivinhamos os movimentos, as percepções, as serventias, a inteligência móvel e imprevisível. Perigo de morte, portanto. Há momentos em que ele nos convida a arder consigo, participar numa langorosa erupção do ardor. Outras, envolve-nos na vertigem da aniquilação. Todavia, fixemo-nos no que ele desvela. E então, rente à corola do silêncio, à sabedoria do mel, à dor que no caminho revela, às mãos que se acendem, escavando, é aí que saem as palavras furtivas, as palavras que buscam a obscura transparência, as palavras que estão a mais. As que queimam.

* O autor escreve de acordo com a antiga ortografia

Sobre o autor

António Godinho Gil

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