Pluvioso

1. Numa tertúlia recente ouvi a história fantástica de um irlandês que decidiu passar os últimos anos de vida na Guarda. Fixei-me na razão por si apontada para a escolha. Quando ia a passar, reparou que as crianças brincavam na Praça Velha como sempre brincaram as crianças: livres e irredutíveis. Coisa rara nos dias que correm. Viajante inveterado, foi esse o quadro que o impressionou. Como se tivesse chegado à segurança de um oásis de paz, num deserto de medo e paranóia. Foi pois um caso de amor à primeira vista. Entre um irlandês errante e um lugar granítico de que nunca tinha ouvido falar e não é cabeça de cartaz dos guias turísticos. Alguns anos de dedicação e generosidade cimentaram a paixão. O extraordinário encontro permite forjar várias comparações, quiçá demasiado ousadas. Imaginar a cidade como uma Finisterra vertical. Onde a terra acaba e não é o mar que começa, mas o céu. Ou como um porto discreto numa ilha remota, capaz de atrair e acolher os que nada têm a perder, e algo a ganhar.

2. Criou-se a ideia de que, nos encontros literários, os escritores se aproximam do público, o público se aproxima da literatura e os livros se transformam num prato de amendoins no meio da cavaqueira. Por sua vez, crê-se que os escritores supostamente despem a sua áurea de inacessibilidade – “até falam de futebol”, diz-se -, fazem esquecer epopeias misantrópicas e trocam acaloradamente os respectivos cheiros a sovaco. Alguns não se importam mesmo em subir a saia e deixar escapar algumas inconfidências acerca da sua próxima obra. Outros são já profissionais da “coisa”. Misturam-se no “milieu” como agentes infecciosos oportunistas. Nunca escreveram nada que se aproveitasse, mas o seu esforço penetro-insinuante acaba por dar frutos sumarentos. Estão lá quase sempre. São vistos. E se são vistos, algum editor acaba por convidá-los para. Neste caso, a chamada “endurance” do croquete, com final feliz. Ocorre-me que os verdadeiros encontros literários passam-se, digamos, noutra frequência hertziana, noutro filme: é o escritor, quando se encontra a si próprio, ou seja, o seu terreno. Alguns exemplos: Malcolm Lowry e o México, Duras e a Indochina, Rilke e os anjos, Kafka e as sombras, Yourcenar e as ilhas gregas, Camus e o sol do Mediterrâneo, Nabokov e o exílio, Borges e os labirintos, Faulkner e Yoknapatawpha.

3. Não há que ser demasiado ambicioso com a dor. Não esperar cânticos de redenção. Deixemo-la simplesmente entrar. Como uma visita persistente e incómoda. Que forçou a porta e pôs os cães das redondezas a ladrar. Nada a fazer. Deixá-la entrar. É ela que nos faz levar a sério. É ela que nos reenvia para dentro de uma lucidez circunspecta, exacta. É através dela que nos chegam os sinais de uma natureza que simplesmente nos reflecte. A que diz: “eu sou e tu estás”, “podes usar-me como quiseres, mas tudo o que fizeres terá consequências”.

4. Depois de ver o aclamado “1917”, de Sam Mendes, prevaleceu um misto de impressões contraditórias. Como que brotando da conclusão principal: a Guerra de 1914-18 tem agora o seu “Apocalipse Now”. Ainda que sem as incidências políticas deste. A guerra é o mais profícuo e exigente cenário para a literatura e o cinema. E Mendes soube tirar partido dele. Mas enquanto no filme de Coppola a expedição ao “Coração das Trevas” deixa a dúvida sobre os limites e as possibilidades da experiência humana, em jeito de viagem de auto descoberta, Mendes encaminha-nos para a epopeia heroica. Onde a frágil humanidade triunfa sobre a morte, o acaso e a desolação. Com vários estádios, como convém. E em que os ambientes fantasmagóricos, mas altamente sugestivos, mais depressa evocam Fellini do que a convencional cinematografia de guerra. E consegue tal desiderato com efeitos especiais de primeira água, uma interpretação espantosa de George MacKay e um notável domínio da técnica narrativa. É certo que a Grande Guerra já foi cenário de filmes mais violentos, mais realistas, ou mais crus. Mas faltava ir ao fundo do coração humano, para o retrato final.

5. No que me diz respeito, é fundamental organizar o pensamento como uma perseguição da realidade. Que inclui o que já lá (ou ainda) não está e o que ela pode arrastar consigo. Perceber que as coisas em si mesmas não são nada, mas tão só em relação com outra coisa. E isso é uma criação do espírito. Pensar é organizar o instante. São “Os Trabalhos e os Dias”, de Hesíodo. Portanto, fora de causa cair nas armadilhas da propaganda, no jargão da baixa política, no colinho da desresponsabilização, na fatuidade bem pensante, na arrumação apressada das dúvidas, no circunlóquio da vacuidade. Podia ser de outra maneira? Podia, mas não era tão sexy!

* O autor escreve de acordo com a antiga ortografia

Sobre o autor

António Godinho Gil

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