Messidor

1. “Deviam ir todos presos!” A semelhança com a deixa final de “O Pai Tirano” é notável. Porém, trata-se da locução preferida do português médio nas redes sociais. Ou na tasca, em contexto rural. O tuga adora mandar tudo preso. Desde que ele fique a ver, com um smartphone, ou um copo de três na mão. Pouco ou nada faz para que “eles” sejam escrutinados com afinco. Não! O tuga médio gosta de ser espezinhado, e depois ir refilar para a tasca, ou para o teclado. Onde se transforma num feroz vigilante. Com frases como “isto se fosse comigo!”, “noutro tempo é que era bom!”, “era capá-los todos a sangue frio!”, “cambada de gatunos, se os apanhasse a jeito é que lhes dizia!”. Claro que, em todas as situações, “ficava tudo caladinho”. O tuga médio, seja homem ou mulher, preto, branco ou amarelo, hetero ou gay, artista ou trolha, funcionário público ou desempregado, com ou sem canudo, citadino ou rural, socialista ou nem por isso, conservador ou revolucionário, do Norte ou do Sul, é essencialmente mesquinho, invejoso e incapaz de assumir responsabilidades. Sabe apontar o dedo, mas não sabe olhar para o dedo que aponta…
2. Existe uma máxima, atribuída ao dramaturgo e novelista russo Anton Tchekhov: se uma espingarda aparece pendurada na parede durante o primeiro acto de uma peça de teatro, deve ser disparada até ao final dessa mesma peça. A figura é conhecida como o “princípio da arma de Tchekhov”. Uma regra que afirma que qualquer objeto introduzido num espectáculo teatral ou num filme, deve servir um propósito. Se não tem nenhuma finalidade, deve ser removido, pois só provoca distracções. O princípio pode ser aplicado, mutatis mutandis, a criações artísticas e literárias. Mas o logro pode ser intencional. Não faltam exemplos na História. Como? Usando o objeto que parece estar a mais como parte de uma manobra de diversão onde o criador conduz o espectador, deixando pistas e enigmas por resolver.
3. A inquietude pairava sobre o Largo da Misericórdia, aka, João de Almeida! Evoé! Mas o quê, o quê? Arredem, Velhos do Restelo! Saiam da toca resmungões, pois aí vêem arrojados firmamentos! Vejo um torneio de dominó nos entre folhos. Piazza del Popolo na montanha! Lajes de S. Marcos na feroz Beyra! Deixem-me! Quero doxar. Doxar até mais não poder. Ah, a doxa que os helenos desprezavam! Ela chegou, suspirando. Mas já lá voltamos. Sous les paveaux, lá lá lá, tiroliroliro, a praia triunfante. Ela saiu nessa noite em busca de aventura. Desafiar as grandes figuras morais. Os labirintos do orgulho e da rigidez. Oye como va! Um passo atrás a dois à frente! E eis a cascata escondida. Chapéus ao alto! Ai o solidó! Pois bem, siga! Ela estava disposta a tudo! Giroflegirofla! Ele viu-a, pousou o martelo compressor e beijou-a com ardor. A multidão, enlouquecida, desceu ao terreiro e opinou. Opinou ao ar livre. Directamente para as estrelas. Mas ela não quis saber. E dançou…
4. O verdadeiro cínico farta-se de pedalar, mas não é ciclista. Sabe que a besta é mortal até duzentos metros. Mas o arco é-o até dez vezes mais, porque não vai a direito. Como transpõe muralhas, mata e incendeia o que se julga a salvo dentro delas. O cínico é o maior propagandista da virtude, se isso lhe for útil. Mas ao contrário do hipócrita, não a usa como bandeira de conveniência. Acredita nela, enquanto ela acreditar nele. Porque, conhecendo os seus próprios limites, sabe que certas palavras queimam mais do que aquilo que são capazes de suportar. O verdadeiro cínico tem como lema a “Autopsicografia” de Pessoa. Sobretudo a última parte. Pois se a dor não fosse verdadeira seria simplesmente um mistificador. Ora, o verdadeiro cínico é também, por tradição, um desastre nas chamadas relações amorosas. Embora a tradição já não seja o que era. Um desastre, porque se esforça para isso. Para a dor parecer verdadeira. Mas sabe que há um limite. De outra forma, passava por insensível. E a dor, que deveras sente, mais não seria do que estratégia. O limite do cínico é, pois, a razão da sua sustentabilidade. Finge a dor, porque sabe que, se não o fizesse, não seria levado a sério. Mas como não pode ocultar de si próprio a dor que não finge, nem desembaraçar-se dela sem um pesado preço, prefere pagar a pronto e retomar o jogo. Até acabar o crédito. É este o seu segredo.

* O autor escreve de acordo com a antiga ortografia

Sobre o autor

António Godinho Gil

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