Fructidor

1. Durante dois meses, assiste-se ao habitual e fugaz êxodo das grandes manchas urbanas para o interior. As novas gerações, habituadas à mobilidade, encaram como natural esta imersão na ancestralidade. Mas com as mais velhas, que têm recordações sólidas dos seus lugares de origem, os problemas são outros. Vejo isso em certas comunidades nas redes sociais, centradas no registo das memórias da Guarda. Evidentemente, partilhar imagens antigas e actuais da malha urbana tem um inegável interesse documental. Associado, muitas vezes, a testemunhos de quem conheceu in loco essas realidades. O problema está na hipervalorização do passado, em confronto com o presente. Reina um saudosismo doentio. Que esquece quem realmente cá vive. Como se a cidade fosse um cenário virtual, onde a caixinha das memórias de cada um se sobrepõe aos imperativos reais do urbanismo e do bem-estar dos residentes. Como se o tempo convenientemente parasse, de modo a que os cultores desse saudosismo, na sua romagem sazonal, pudessem saborear as suas memórias sem os escolhos da realidade. Intocadas. Tudo isto é, em certa medida, compreensível. Tem mesmo uma vertente de sacralidade não desprezível. Mas amputar uma cidade da sua dinâmica e reduzir os seus habitantes a figuras de presépio de um álbum de fotografias mais não é do que uma manifestação de egoísmo pueril e perigoso…
2. No início de Abril de 1968, Robert Kennedy estava em campanha para as primárias do Partido Democrata, no Indiana. Na contenda, corria contra adversários de peso: o Senador Eugene McCarthy, declaradamente antiguerra, e o Vice-Presidente Hubert Humphrey, que viria a ser nomeado na turbulenta convenção de Chicago. Entretanto, acompanhando essa e a convenção dos republicanos, a cadeia televisiva ABC convidou Gore Vidal e William F. Buckley Jr. para uma série de debates políticos em directo, no modelo ponto/ contraponto, novidade na altura. Dois pesos pesados da intelectualidade – o primeiro um polémico escritor representante da nova esquerda e o segundo um reconhecido conservador, embora na tradição libertária americana – passaram em revista os temas quentes da agenda política de então. Trazendo para a TV a guerra cultural que dividia e continua a dividir a América. Com base nos debates, foi realizado um notável documentário intitulado “Best of Enemies”. Voltemos a Bob Kennedy. Quando foi conhecido o assassinato de Martin Luther King, decidiu-se suspender as acções de campanha. No entanto, o Senador eleito por Nova Iorque quis fazer uma curta declaração aos seus apoiantes. Um discurso improvisado, onde a consternação se cruzou com o encorajamento. Bobby fez o impossível para conter as emoções à solta. Embora tivesse um discurso preparado, falou de improviso, numa intervenção ainda hoje lembrada. Mantendo uma frieza temperada pela comoção, que não tardou a dar lugar à surpresa. Foi quando fez sair da cartola um poema de Hesíodo, com que brindou a audiência. Classe pura. Cinquenta anos depois, temos um Homem de Neardenthal a ocupar um lugar que poderia, ao tempo, ter sido o seu. Se a tragédia não o tivesse apeado no momento mais alto, dois meses depois. Precisamente na noite em que festejava a vitória na Califórnia, a mais do que certa nomeação e o caminho aberto para a presidência.
3. No país fictício do PAN, do BE e da deputada Isabel Moreira, os urbanitas frequentadores do Bairro Alto, precários com ou sem licenciaturas, dão a vida por animais de estimação, toiros e vítimas do “heteropatriarcado”. Acham-se modernos. São especialistas em “políticas de género”. Dão de barato que a liberdade de expressão é muito relativa. Adoram coitadinhos “tipo” refugiados, gays e assim. No país real, o povo gosta de pimba. Trabalha no duro. Tudo faz para que os filhos sejam “dótores”. Veste mal. Vai às touradas, às romarias e a Fátima. Passa férias low cost no Algarve. And last but not least, volta e meia um “popular” exaltado pega na caçadeira e transforma a mulher num passador fino, antes de a apontar à cabeça e aqui vai disto. Um clássico generosamente esmiuçado ad nauseam na CMTV. Um exemplo. Esta semana, na Torre, 400 manifestantes participaram num protesto em formato flash mob contra a exploração do lítio. Estes cidadãos adoram proibir, impor, condicionar. Tudo com base em credos pré-científicos. Neste caso, queriam impedir que o interior possa explorar os seus recursos. Aposto que, após a manifestação, foram todos partilhar as respectivas imagens nos seus smartphones e tablets topo de gama, com baterias de lítio…
4. É mais fácil escrever sem as mãos. Escrever sem as mãos acontece quando sei que sou mais do que sinto que posso ser. A carne frágil das minhas mãos alucinadas, cheia de febre, é também uma morte espantosa. O alento das horas nocturnas que ardem e arquejam. Que sobram do tempo. Então, olho as fotografias dos meus antepassados. E vejo nelas apenas o silêncio que foi retratado. Uma garra da morte cujo movimento foi surpreendido.

* O autor escreve de acordo com a antiga ortografia

Sobre o autor

António Godinho Gil

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