A inutilidade das coisas

Escrito por Maria Afonso

Não vivem deuses nesta cidadela. Nunca viveram. Jamais homem algum se vergou a qualquer deus. Vive fora do mundo, num tempo longínquo capaz de nos percorrer em segundos. Ciclópica fortificação entre dois montes e desfiladeiros intimidatórios. As leoas vigiam a entrada resignadamente. Duas feras afrontadas, corpo em tensão musculado, a escorrer um suor quase negro. Os olhos do tempo vincados na pedra. As portas já não são obstáculo. Entra-se e tudo em nós toma outra dimensão. A respiração apressa-se num descompasso imprevisto. Um excesso de ar torna-nos mais leves. Somos uma espécie de balão de hélio na indagação da gravidade.
As pedras de mármore branco falam dos pés dos homens que levantaram cidades e pintaram frescos em palácios. Homens hábeis na sedução do azul. O céu ali tão perto. E vai-se subindo até ao princípio da luz. Imaginamos frutos frescos de morder e arrecadamos o suculento escorrer das estrelas quando a noite se despe. Um lume é convocado para nos queimar a pele. Oliveiras ladeiam os nossos passos. Sorvemos o que a sombra tem de mais sagrado. Se ainda houvesse água em Micenas purificaríamos os pés da poeira milenar.
Sabemos das mulheres que ali viveram e dos espelhos de bronze polido onde se observavam. Dos seus cabelos enfeitiçados. Dos seus corpos serpenteados. Nas suas mãos abriam-se crateras e galerias que as guiavam à porta secreta. Os sublimes colares de ouro martelado não substituíam amores imperfeitos. Uma vez ou outra o desalento guiava-as ao mar. Nadariam até à exaustão. Uma babel salgada crepitaria no lume do instante. Entre naufragar ou emergir uma braseira apática. Afadigadas, sob o peso das vestes alagadas, regressam a si.
Olhamos o palácio e incendiamos o megaron. As mãos cabem nas cavidades da ombreira do portal que o tempo erodiu. Aqui não chegou o suor negro das leoas. Um mármore leitoso estimula as carícias. É a pele dos milénios cantada por rapsodos. Vemo-nos como Platão, no seu tratado de poesia, e queremos que aquelas pedras nos olhem, e que o seu choro, o seu olhar espantado, até o seu terror responda às nossas palavras. Perguntas inocentes de quem conhece o gosto do leite pela manhã.
Borboletas esbranquiçadas seguem a nossa caminhada. O sol invocado queima num ardor de meio-dia. As borboletas tocam-nos o rosto. Como se perguntassem – não sabem ouvir o vento? Nada sufoca em Micenas. Muito menos o calor. Se pestanejarmos observamos o mar não muito distante. O Egeu tem a cor fresca dos anéis das mulheres que se lançam às águas. Mal se adivinha que a dois passos se esconde o tesouro de Atreu. Descemos porque assim tem de ser.
Podem os gregos implodir Troia porque já não temos Aquiles. Micenas continuará a imortalizar os homens. Alguns animais selvagens. Ao virar a cabeça lançamos um derradeiro olhar. Os olhos sangram.

Sobre o autor

Maria Afonso

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